Clonagem reprodutiva não é um substituto para as falhas perfeitas da humanidade
As experiências propostas em clonagem humana, anunciadas pelo embriologista italiano Severino Antinori[1], são perigosas, irresponsáveis e merecem condenação. Assinalam um retrocesso, pois estão jogando roleta com a vida humana.
A clonagem é um procedimento repleto de riscos. Nas experiências que criaram a ovelha Dolly, 277 clones de embriões foram produzidos. Apenas 29 desenvolveram-se ao ponto de poderem ser implantados, e apenas um sobreviveu a termo. Os outros desenvolveram anormalidades e foram abortados. Em todas as experiências com animais até o presente, menos de 3 por cento das tentativas de clonagem foram bem sucedidas. Não apenas ocorrem mortes fetais e natimortos, mas mesmo entre aqueles que sobrevivem há uma alta incidência de anormalidades não detectadas a princípio.
Há apenas um mês um importante estudo nos Estados Unidos mostrou que ratos clonados, externamente saudáveis, portavam uma instabilidade genética básica que os colocava em risco de deformidade e morte prematura. A clonagem aparentemente perturba o processo normal de "impressão genômica[2]", pelo qual os genes nos cromossomos vindos de um genitor são ligados ou desligados. A evidência já convenceu muitos cientistas que a clonagem de mamíferos é um processo intrinsecamente falho. Certamente é inseguro demais para ser usado em reprodução humana.
Estas não são reações leigas. Dr. Ian Wilmut[3], que clonou a ovelha Dolly, afirmou várias vezes acreditar que a clonagem humana não será aceitável. Dois meses atrás, a Royal Society pediu o banimento da clonagem humana em todo o mundo. Os riscos são muito altos e as dúvidas grandes demais. Estas são vozes sábias.
Uma coisa é tentar um procedimento médico arriscado em um paciente vivo que enfrenta a morte certa, e outra bem diferente é trazer ao mundo crianças que correrão enormes riscos de anormalidades e morte prematura. O que dirão os médicos, ou os pais, àqueles que não nascerem da forma que se esperou? Desculpe? Achei que era seguro? A tragédia da Talidomida[4] certamente deveria ter sido suficiente para fazer os cientistas pensarem duas vezes antes de tornar disponíveis tratamentos ainda não completamente testados que tenham uma alta - neste caso, avassaladora - chance de falhar.
O que dirão os médicos, ou os pais, àqueles que não nascerem da forma que se esperou? Desculpe? Achei que era seguro?
Entretanto, a clonagem não é apenas outra tecnologia. Levanta aspectos jamais apresentados por outro tipo de reprodução assistida. A transferência do núcleo celular ou célula somática é uma forma de reprodução assexuada. Não sabemos por que criaturas grandes, de vida longa como nós, se reproduzem sexualmente. De um ponto de vista evolucionário, a reprodução assexuada parece muito simples. Evita o problema de encontrar um parceiro e todo o amor e guerra que se seguem. Mesmo assim, nenhum dos mamíferos maiores se reproduz assexualmente. Será apenas pela combinação imprevisível de dotes genéticos de pais e avós que uma espécie pode gerar a variedade de que precisa para sobreviver? Correr riscos com nosso próprio futuro genético é suicida.
A verdadeira objeção à clonagem, porém, é a ameaça às crianças nascidas desta forma. É certo que pessoas geneticamente idênticas já existem, como no caso de gêmeos idênticos. Uma coisa, porém é isto acontecer; outra coisa é provocar deliberadamente esta ocorrência. Gêmeos idênticos não existem para que um possa servir como fonte de tecido compatível de substituição para o outro. Mas a clonagem trata as pessoas como meios, ao invés de fins em si mesmas. Será um passo decisivo na co-modificação da vida humana. Poderá apenas transformar alguns dos aspectos mais básicos de nossa humanidade.
Toda criança nascida da mistura genética entre dois genitores é imprevisível, um dom de graça, parecida e ao mesmo tempo diferente daqueles que a trouxeram ao mundo. Esta mistura de parentesco e diferença é o aspecto essencial dos relacionamentos humanos. Está por trás daquilo que é a crença que define a civilização ocidental, que cada indivíduo é único e insubstituível. O que seria do amor se soubéssemos que, caso perdêssemos o ser amado, uma réplica poderia ser criada? O que aconteceria ao nosso senso de individualidade se fôssemos feitos sob encomenda? Se há um mistério no âmago da condição humana, é a diversidade: a diversidade do homem e mulher, pai e filho. É o espaço que criamos para diversidade que torna o amor algo mais que narcisismo, e a paternidade algo maior que uma autocópia. É isso que dá a cada criança o direito de ser ela mesma, de saber que não é a reprodução de alguém, construída segundo um molde genético pré-planejado ao capricho de alguém. Sem isso, a infância seria suportável? O amor sobreviveria? Um mundo de clones ainda seria um mundo humano? Duvido.
Há alguns mistérios perante os quais, a única reação apropriada é reverência, responsabilidade e moderação. Dr. Antinori e sua equipe demonstraram uma falta das três.
[1] É um médico ginecologista italiano que mora e trabalha em Roma. Defende a clonagem humana. No início de 2002, surpreendeu o mundo ao clonar pela primeira vez uma célula humana.
[2] Genômica é um ramo da bioquímica que estuda o genoma completo de um organismo. Essa ciência pode se dedicar a determinar a seqüência completa do DNA de organismos ou apenas o mapeamento de uma escala genética menor.
[3] A ovelha Dolly (5 de Julho de 1996 — 14 de Fevereiro de 2003) foi o primeiro mamífero a ser clonado com sucesso a partir de uma célula adulta. Dolly foi criada por investigadores do Instituto Roslin, na Escocia, onde viveu toda a sua vida. Os créditos pela clonagem foram dados a Ian Wilmut, mas este admitiu, em 2006, que Keith Campbell seria na verdade o maior responsável pela clonagem.
[4] A talidomida (C13H10N2O4) é uma substância usualmente utilizada como medicamento sedativo, anti-inflamatório e hipnotico. Devido a seus efeitos teratogénicos, tal substância deve ser evitada durante a gravidez e em mulheres que podem engravidar, pois causa malformação ou ausência de membros no feto.