Haftará de Bereshit
(Isaías 42:5-43:10)
(Isaías 42:5-43:10)
Tudo
foi criado em Meu Nome
a) Riqueza guardada
A Parashat Bereshit é muito rica de temas. Ela abarca
várias centenas de anos e todos os seus temas se relacionam a princípios: a
criação do mundo e a criação do homem; o status do homem; seu pecado e
expulsão; o pecado de Caim e sua punição; as primeiras gerações; o
“arrependimento” divino pela Criação, etc. Haverá em todos os textos de
profecia um capítulo que complemente toda a abundância temática existente na
parashá?
Quase todas as comunidades judaicas adotaram a
profecia de Isaías e lêem o capítulo 42[1] (há
diferenças entre as comunidades quanto ao versículo inicial ou final da Haftará[2]). Examinemos
algumas das idéias e mensagens contidas na profecia e sua conexão à parashá.
b) Afirmação constante
Já no início a profecia se refere a D’us com o Criador
de tudo: “Assim diz D’us, o Eterno, que criou os céus e os estendeu[3]; que
expandiu a terra e o que dela procede[4] …” (Isaías
42:5).
Ora, isso é uma clara reminiscência às primeiras
palavras da Torá: “No princípio criou D’us os céus e a terra”.
Porém, enquanto a Torá descreve o acontecimento no
passado: ‘No princípio D’us criou’, a profecia usa o verbo no presente:
D’us cria. Isto significa cria a todo momento, conforme dizemos na prece
matinal: “Ele, na sua bondade, todos os dias, constantemente, renova a obra da
Criação”.
Evidentemente, só um Criador que está criando constantemente
pode estar envolvido o tempo todo em sua criação; assim, encontramos no
prosseguimento da profecia: “Montes e outeiros devastarei e secarei toda sua
erva … e secarei os lagos” (42:15). Disso deriva também a possibilidade de
arrependimento, assim como de tomada de decisão, que encontramos no final da
parashá: “Farei desaparecer o homem que criei de sobre a face da terra, desde o
homem até o quadrúpede, até o réptil e até a ave dos céus…” (Gênesis 6:7). Se a
Criação é dinâmica e constante, é possível ocorrerem comoções e mudanças.
Porém, na determinação das comoções e das mudanças, o
Todo Poderoso já tem uma espécie de ‘associado’, o homem. Os atos do homem
foram decisivos na decisão sobre seu próprio destino e o destino do mundo.
c) O mundo, o homem e o povo
O auge da Criação é o homem. Foi criado por último, e
encontrou tudo pronto diante de si; sua alma foi talhada de fonte superior, e
foi criado à imagem e segundo a semelhança de D’us; o Criador lhe falou,
apontando-lhe a missão e o caminho: “Frutificai e multiplicai, e enchei a terra
e subjugai-a …” (1:28). A Haftará, porém, não fala do homem[5], refere-se
ao povo: “dá fôlego de vida ao povo que está sobre ela e espírito de santidade
aos que andam pelo seu caminho” (42:5). Este mesmo povo fez uma Aliança com o
Criador: “o Meu povo à aliança, e para a luz, os gentios” (6), e sua missão é:
“abrir os olhos aos cegos e tirar da prisão os presos …” (7).
Esta combinação de início da Criação e de entrega da
alma ao povo constitui-se num reforço da interpretação de Rashi em sua hexegese
de Gênesis: “No princípio” – por causa da Torá, que é chamada o princípio (reshit)
… e por causa do Povo de Israel que é chamado as primícias (reshit). A palavra “por causa de” (bishvil) não
expressa sentimentos de superioridade e singularidade no mundo, como se apenas
o Povo de Israel tivesse realmente o direito à existência, mas sim parece-se
com o que está escrito na Mishnat Sanhedrin: “Por isso, cada um é obrigado a
dizer por minha causa o mundo foi criado”. O Rabino Nachman de Braslev
acrescenta: “Eu tenho a responsabilidade de trabalhar por sua perfeição”. Não
se trata de uma superioridade que vem exigir privilégios especiais, mas sim
expressa o tamanho da responsabilidade e da missão: o destino de todos os povos
do mundo pesa sobre os ombros deste povo.
Nesta mesma profecia encontra-se uma afirmação que
elimina qualquer possibilidade de encarar uma ou parte das criaturas como sendo
a meta de toda a Criação; cada uma das criaturas teve sua própria razão de ser
criada: “Todos os que são chamados pelo Meu nome, e os que criei para Minha
glória, e que formei e fiz (43:7).
Dessa passagem Maimônides[6] concluiu
que cada um dos componentes da Criação tem seu objetivo em si mesmo. E a glória
de D’us deve ser cantada de uma ponta da Terra à outra: “Cantai ao Eterno, um
cântico novo, e o seu louvor desde a extremidade da Terra … pelo mar e por tudo
quanto há nele … Dêem glória ao Eterno e anunciem nas ilhas o seu louvor”
(42:10-12).
d) O exílio e a redenção
Tanto o indivíduo, na parashá, quanto o povo, na
haftará, são punidos com o exílio. O homem é expulso do Jardim do Éden por
causa de seu pecado, e o povo é expulso de sua terra: “Mas este é um povo
roubado e esmagado … foram postos como presa, e ninguém há que os livre …” (42:22). E o profeta explica por que ocorreu todo esse mal: “Quem entregou Jacob
para ser esmagado … acaso não foi o Eterno, Aquele contra quem temos pecado …
não dando ouvidos à Sua Lei?” (24).
Porém, se na parashá o homem permanece no exílio, e
não retorna ao Jardim do Éden, a profecia fala de retorno e redenção: “Trarei
do oriente a tua descendência, e te ajuntarei desde o ocidente. Direi ao norte:
entrega os cativos, e ao sul: não os retenhas, traze de longe Meus filhos …” (43:5-6).
Talvez a ligação entre a parashá e a haftará contenha
um indício de que a redenção do Povo de Israel encerrará o círculo vicioso das
erranças do primeiro homem e de toda a humanidade, e a descendência de Adão
retornará ao lugar sonhado, ao Jardim do Éden[7].
Na verdade, a própria existência
do ato da Criação tornou possível que ele se pareça como a visão da redenção.
Pois o profeta descreve: “E te darei o poder para trazeres o Meu povo à
Aliança, e para a luz, os gentios … e de tirares da prisão os presos e do
cárcere os que habitam nas trevas” (42:6-7). Segundo a descrição do Livro do
Gênesis, o mundo, antes de existir, estava envolto nas trevas: “e (havia)
escuridão sobre a face do abismo” – até que se ouviu o anúncio da criação e da
redenção: “Seja luz”.
A justaposição da profecia à descrição da Criação,
significa talvez que a redenção é comparável ao ato da Criação, é como a
criação da luz pela primeira vez[8].
Na haftará encontra-se o anúncio da redenção de um
outro pecado inicial. A parashá conta-nos que no tempo de Enosh “começou-se a
invocar o nome do Eterno” (4:26).
Rashi, citando o Midrash (Bereshit Rabá 23:7) explica:
“Naquele tempo começaram a chamar homens e imagens pelo nome do Todo Poderoso,
praticando a idolatria e chamando-as (as imagens) de divindades” – ora, isto é
o início do paganismo no mundo[9]. E o
profeta prevê: “Tornados atrás e cobertos de vergonha ficarão os que confiam em
imagens esculpidas, e os que às imagens de fundição dizem: Vós sois os nossos
deuses” (42:17).
e) O testemunho de D’us é fiel
Há dois costumes relativos ao tamanho da haftará: o
dos sefaraditas, que concluem no versículo 42:21e o dos ashkenazitas, que lêem
até 43:10. Há duas mensagens importantes nos respectivos versículos de conclusão.
Segundo o costume sefaradita, o último versículo lido
é: “Foi do agrado do Eterno, por amor da Sua justiça, engrandecer a Lei e
torná-la gloriosa” (42:21); é como um lembrete da exegese mencionada acima: “No
princípio” – por causa da Torá, que é chamada o princípio (reshit)”. O
mundo foi criado por causa da Torá, o eterno testemunho de D’us como Criador.
Segundo o costume ashkenazita, termina-se com o
versículo que fala de outras testemunhas: “Vós sois as minhas testemunhas, diz
o Eterno …” (43:10). Toda a criação é testemunha do Criador, mas o Povo de
Israel é o único consciente dessa missão, a de serem testemunhas fiéis “que Eu
sou; antes de Mim não se formou nenhum D’us, e depois de Mim nenhum haverá”
(ib.). E aqui temos a relação com a outra exegese de Rashi: “por causa do Povo
de Israel, que é chamado as primícias (reshit) de Sua colheita”.
SHABAT SHALOM!
[1] Com exceção do costume das comunidades rumenas, que lêem a profecia do
final do Livro de Isaías, que se inicia com o versículo: “Pois eis que Eu crio
novos céus e nova terra …” (65:17)
[3] Interessante que na parashá a expansão (rakia)
é chamada de céu (shamaim), enquanto que aqui se diz: “expandiu a terra”
(roka haaretz). De modo semelhante vemos também: “Sozinho estendi
os céus e sozinho expandi a terra” (Notê shamaim levadi, roka haaretz
meiti) (44:24); e também em Salmos “Àquele que expandiu a terra (laroká
haaretz) sobre as águas” (136:6)
[4] É possível que a expressão “os céus e os estendeu;
que expandiu a terra e o que dela procede” confirme a exegese de Nachmânides de
que já no início D’us criou a matéria amorfa da qual foram feitos o céu e os
astros, e a matéria amorfa terrena, da qual tudo que há sobre a terra foi
criado. Ele cita um midrash que aponta para esse sentido: “‘o céu’ –
inclusive o sol, a lua, as estrelas e os signos do zodíaco, ‘e a terra’ –
inclusive as árvores, a grama e o Jardim de Éden” (Bereshit Rabá 1:19).
[5] Segundo o costume dos iemenitas, encontraremos também
alusão ao homem individual: “Eis aqui o meu servo, a quem sustenho; o Meu
escolhido, em quem a Minha alma se compraz” (42:1). Este homem individual é o
homem superior, o Rei Messias (Radak, ib.), sobre o qual, como sobre o primeiro
homem, paira o Espírito Divino, e que, também como o primeiro homem, encerra em
sua personalidade toda a humanidade
[6] Guia dos Perplexos, Parte III, 13 (leia com atenção)
[7] Como uma espécie de lembrete do
castigo recebido pelo homem no Gênesis, há versículos na haftará tais como:
“Agora darei gritos como a que está de parto, e os farei desertar e os tragarei
ao mesmo tempo” (42:14). Isto é como um eco da maldição do Gênesis: “Com dor,
darás à luz, filhos” (3:16). Quando o homem e a mulher comeram da árvore do
conhecimento do bem e do mal, abriram-se seus olhos; mas, na verdade, tornaram-se cegos do conhecimento da verdade e
da mentira (veja O Guia dos Perplexos 1b. O profeta refere-se aos cegos e
surdos (42:16-20), e ainda antes: “A fim de abrir os olhos cegos” (42:7).
[9] Veja também Maimônides, início das leis de Avodá
Zará