O que é o Talmud
Não é facil definir
ou caraterizar, breve e concisamente, o Talmud. É um tema que escapa à
definiçãopela grande variedade de seu conteúdo e, sobretudo, porque não
existe outra obra com a qual estabelecer termo de comparação.
O Talmud, tão atacado, tão discutido e
tão menosprezado, é pouco - para não dizer nada - conhecido. A maioria dos que
dele se ocuparam, apenas repararam e insistiram em seus defeitos; no
entretanto, fora do Judaísmo, são contados os que penetraram no oceano dos seus
livros com a honrada intenção de encontrar as pérolas, de aproveitar o que tem
de bom e de útil, sem deter seus pensamentos no que, à primeira vista, poderia
parecer inútil.
Quando, em 1304, o papa Clemente V quis
saber o que era o Talmud, muito embora já houvesse sido objeto de polêmicas
religiosas - essas polêmicas quase sempre são estéreis - e de numerosos
ataques, ninguém foi capaz de responder á sua pergunta: ninguém sabia fazê-lo.
E apesar das cátedras que fundou, o Talmud, as belezas do Talmud, continuaram
sendo desconhecidas. Um só exemplo, porém significativo.
Poder-se-ia alegar que isto ocorria na
Idade Média, época em que um religioso chegou a crer que o Talmud era um nome
próprio e dizia: "ut narrar rabinus Talmud" (*); mas, mesmo na Idade
Moderna são pouquíssimos - entre eles não se pode deixar esquecido o nome de
Reuchlin - os que chegaram não a resolver, porém apenas a delinear o problema
em seus justos limites. Em pleno século XX, um teólogo permitiu-se dar grandes
gargalhadas porque um tratado inteiro fôra dedicado aos ovos, ignorando por
completo que é comum no Judaísmo designar-se uma obra por suas palavras
iniciais. E ainda hoje muitos mencionam o Talmud - e exatamente o mesmo pode-se
dizer em relação à Cabala - como algo obscuro e . . . absurdo, um dos muitos
tópicos paradoxais que abundam na cultura atual.
O Talmud não somente alimenta a alma e o
espírito, mas também atiça a imaginação; embora não seja uma obra de arte,
contém muitas obras de arte. É bem verdade que figuram nele coisas úteis e
inúteis, de grande valor ou puramente anedóticas; mas daí a que seja um
absurdo, existe um grande abismo que é preciso - e a isto nos propomos -
vencer.
É
evidente que não se pode julgar o Talmud com o mesmo padrão que se emprega para
medir as demais obras literárias. São necessários critérios especiais, pois o
Talmud não é somente literatura, mas sim a vida inteira do Judaísmo vertida em
uma obra.
Se uma catástrofe semelhante à que sofreram
Pompéia e Herculano houvesse petrificado seis ou dez séculos da vida judaica, o
resultado seria - e é - o Talmud. Precisamente por isso pode-se dizer que é
obra de toda a nação judaica, realizada no decorrer do referido período. E esse
feito, a realização prolongada no tempo, explica perfeitamente a grande
variedade de temas que nele reina. Trata-se de uma vasta enciclopédia, muito
desordenada, na qual existe de tudo, porém sem sistema. No Talmud é difícil
encontrar o dado concreto, a menos que seja de matéria legal - porque esta
matéria tem ainda hoje validez no Judaísmo - em cujo caso umas chaves-índice,
as codificações que mais adiante citaremos, são auxiliares indispensáveis.
Se à desordem com que as matérias estão
distribuídas na "Enciclopédia" se acrescenta o fato de que os
autores, cujo número se aproxima de dois milhares, pertencem a diversas épocas
e regiões geográficas, a muito variadas escalas sociais e formações, desde o
ignorante ao sábio, portanto de desigual autoridade, sustentando às vezes
teorias muito díspares, inclusive contraditórias, expostas seja em ordem direta
umas às outras, seja em páginas muito distantes entre si, - explica-se que
junto a idéias sublimes se encontrem opiniões ou ditos vulgares; que junto a
moral elevada venham citadas superstições populares, que junto à regra médica,
lógica e perfeitamente regulamentada, apareçam remédios de curandeiro. Eis aí
uma enciclopédia caótica.
O Talmud foi amiúde criticado de que ao
associar assuntos tão diversos, a mente vê-se incapaz de separar o sutil do
vulgar, o externo do espiritual; mas mesmo que assim seja, o ulterior
desenvolvimento da história judaica demonstrou a carência de base de tal
conceito. O Talmud nunca foi considerado um código fechado, porém muito mais um
apanhado das diversas interpretações das leis bíblicas e tradicionais, um
relato verídico das variadas opiniões rabínicas acerca das experiências humanas
em relação com a sociedade, com Israel, com Deus e com o reino divino.
No Talmud, podem distinguir-se duas
partes, ou melhor dito: duas obras separadas que se encontram numa só edição.
Estas duas obras são: a Mishnáh e a Guemaráh; a primeira - única, a segunda -
dupla, e cuja formação e conteúdo estudaremos sucessivamente.
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(*) O historiador francês Bossuet pediu certa vez ao filósofo alemão Leibniz que lhe enviasse um livro do Talmud, traduzido por "Monsieur Mishná" . . . (N. T.)