quinta-feira, junho 16, 2011

A Guerra entre o bem e o mal.

clip_image001[4] Como judeu, não pude deixar de refletir sobre as atitudes contrastantes para com esta luta épica entre o judaísmo e o mundo de Harry Potter

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Os livros da série Harry Potter não são apenas romances. São contos de fada modernos, com uma predominância de temas espirituais. Descrevem a luta entre o bem e o mal, e o supremo triunfo do bem, através da coragem e engenhosidade do espírito humano, e do poder do amor.

A sobrevivência do garoto Harry contra a investida do perverso Lord Voldemort, que custou a vida de seus pais, é repetidamente atribuída ao poder do amor de sua mãe, e sua disposição em sacrificar sua própria vida no altar deste amor.

Em cada uma das histórias, Harry e seus amigos triunfam sobre o malvado Lord Voldemort devido ao poder espiritual da bondade implantado em Harry, a força do poderoso vínculo de amizade entre Harry e o fiel Ronny, a engenhosidade e a capacidade de resolver os problemas do estudioso Hermione, e a coragem combinada de todos eles.

O tema que especificamente captou meu interesse é o conflito entre o bem e o mal, o que talvez retrate a atitude dominante em nossa cultura. Como judeu, não pude deixar de refletir sobre as atitudes contrastantes para com esta luta épica entre o judaísmo e o mundo de Harry Potter.

O que me surpreendeu a princípio é que a luta entre o bem e o mal não é encontrada no mundo dos Trouxas. No Mundo dos Trouxas, o mal de Voldemort se transforma na estupidez, venalidade e maldade dos parentes de Harry, os Dursley. Estas são características que mesmo a coragem e criatividade de Harry Potter não podem superar; o único método de lidar com eles é a fuga.

Nos livros de Harry Potter, embora o bem lute contra o mal, os combatentes não são livres para escolher um dos lados.

As pessoas no mundo dos Trouxas - o mundo real versus o mundo mágico - são banais ou interessantes. As banais são bitoladas e egoístas, e não há maneira de redimi-las. Não podem mudar ou serem mudadas. As interessantes têm bastante probabilidade de receber um convite para freqüentar Hogwarts. Aquelas que não são somente podem ser manobradas mantendo-se distância delas. No mundo dos Trouxas, tudo está fadado a permanecer uma confusão.

Assim, os Dursley permanecem estáticos. Sua conexão com Harry - embora eles demonstrem um ato de grande bondade fornecendo um lar para um órfão - os deixa sem inspiração. Somente suas características negativas se intensificam de livro para livro. Perante nossos olhos, o primo Dudley se desenvolve em um monstro egoísta, egocêntrico e intolerante, com total encorajamento por parte dos pais.

Porém os Dursley são apresentados como trouxas, não como perversos.

A resposta à maldade

Em contraste, o judaísmo ensina que o propósito principal neste mundo Trouxa é mudar estes traços negativos do caráter. A resposta para superar a maldade e a estupidez não é escapar para um fascinante ambiente mágico, mas sim ajudar a mudar o mundo em que a pessoa está.

Um de meus principais deveres como pai judeu é ensinar os filhos sobre o heroísmo envolvido na formação do caráter de uma pessoa. Assim como eles devem lutar contra sua própria negatividade, precisam aprender a considerar a venalidade de outros como uma qualidade, contra qual todos estão lutando. Quando o fazem, adquirem a característica de sempre julgar favoravelmente os outros, e dar-lhes o benefício da dúvida.

No mundo dos Hogwarts, onde há um conflito entre o bem e o mal, as pessoas não são retratadas de forma tão diferente. Com a possível exceção do Professor Snape, não há personagens de caráter ambíguo, nem pessoas que passam por desenvolvimento moral do caráter. A partir do momento de entrada em Hogwarts, cada um tem seu lugar fixo.

O Chapéu Seletor divide os novatos de onze anos de idade entre várias casas. Nos primeiros três livros, nada há de bom sobre Sonserina, nem há nada de mal sobre Gryffindor. Todos os membros da Casa de Sonserina têm uma aparência perversa e ameaçadora, com padrões de linguagem sem igual, ao passo que podemos nos identificar com todos os personagens Gryffindor.

O bem é puramente bom, e o mal é totalmente mau. Não há uma área de ambigüidade ou confusão. Os combatentes não são livres para escolher um dos lados. Estão congelados em seus campos, devido a seu caráter.

Embora Dumbledore diga a Harry que são as opções da pessoa que nos dizem quem ela é realmente, a escolha de Gryffindor por Harry dificilmente poderia ser chamada de opção. Ele nunca foi atraído pela Casa de Sonserina. Na verdade, o fato de que o Chapéu Seletor tenha detectado nele algumas tendências da Casa de Sonserina é uma fonte de ansiedade para Harry. Harry tem alguns poderes que são normalmente associados com as artes das trevas, tal como língua de cobra, porém ele não possui um único traço negativo de caráter que seja indicativo dos Malfoys, ou mesmo Tom Riddle, seu suposto reverso.

A falta de habilidade de alterar o caráter de alguém e de escolher livremente os lados transforma a épica luta moral entre o bem e o mal em uma simples luta pelo poder. A vitória pertence àquele que apresentar a mágica mais forte. A guerra entre o bem e o mal não é um conflito pelos corações e mentes da humanidade. Cada lado compete pela hegemonia sobre o mundo externo, nada mais.

Além disso, não há uma tentativa de redimir o mal ou transformá-lo. O bem quer simplesmente manter o status quo, e impedir o mal, na forma de Lord Voldemort, de tomar pé. O mal deseja dominar simplesmente porque é o mal e odeia o bem, e vice-versa. Seu único objetivo é destruir um ao outro.

Não há evidência de livre arbítrio, e, portanto não há responsabilidade moral. O conflito inteiro é um jogo quadriball glorificado; tudo é muito divertido, desde que seu time vença.

A luta do coração

Em contraste, a essência de toda a crença judaica é que o conflito entre o bem e o mal é de natureza moral. Acontece no coração, não no mundo exterior. Os combatentes são a consciência do homem contra seus anseios, a espiritualidade do homem contra a força física da vida.

O mal crepita com prazer sensual, ao passo que a trilha do bem leva ao júbilo espiritual

Segundo a perspectiva judaica, o mal não é repulsivo. Pelo contrário, para assegurar que tivesse uma chance justa de nos apresentar escolhas feitas de livre vontade, D'us fez o mal atraente, dando-lhe um tremendo charme para que tivesse chance na luta. O apelo do bem é a integridade e a pureza, qualidade que todos reconhecem como maravilhosas, mas apresentam-se carentes de diversão e encanto.

O mal crepita com prazer sensual, ao passo que a trilha do bem leva ao júbilo espiritual, associado com uma conexão a D'us. Há uma guerra pela alma do homem: entre o puro e o certo por um lado, e o atraente e sedutor, mas errado, do outro.

Segundo a crença judaica, o foco da batalha entre o bem e o mal não é a hegemonia sobre o mundo exterior, mas sobre a alma do indivíduo humano e o poder que ela contém.

As opções humanas contêm esta habilidade "mágica" para fornecer poder à força negativa. A Toráh declara que D'us formou o ser humano à Sua própria imagem (Veja Bereshit, cap. 1). Isso significa que D'us nos investiu com algo semelhante a Seu imenso poder, fazendo de nós agentes livres exatamente como D'us - seres com livre arbítrio.

O livre arbítrio dá ao homem o poder de investir a energia Divina colocada sob seu controle como lhe aprouver. Além disso, as decisões sobre a investidura desta força Divina são efetivas e comprometedoras. Quando o homem investe na ânsia negativa do mal, na verdade investe esta força com seu próprio poder Divino.

O mal interior refletido no exterior

O mundo exterior simplesmente adapta-se à condição moral do espírito humano. O mal no ser humano é refletido pelo mal no mundo, o mal apenas brota pela corrupção do bem.

Na Criação, D'us deu à força negativa o poder de tentar o homem para longe do caminho certo, nada mais. Recebeu o poder de atrair, mas não de destruir. O poder destrutivo origina-se no espírito humano corrupto, que é a força mais poderosa no universo criado. Quando a força negativa criada por D'us para tentar o homem é sustentada por imensas contribuições da força de vida humana, adquire o poder de remodelar o mundo à sua própria imagem.

A Força Divina no homem tem o poder de moldar tudo no universo. Quando o homem aplica esta força no lado escuro e negativo da criação, o mal adquire a capacidade de remodelar o mundo à sua própria imagem.

Somente quando o mal exaure suas reservas e gasta toda a força de vida que foi investida em seus atos de pura destruição, o universo pode livrar-se de sua influência maligna. Apenas então a força negativa volta a ser meramente uma tentação.

Redimindo a Voldemort

O relevante ponto final de divergência entre o judaísmo e as sagas de Harry Potter é a capacidade de se arrepender e conquistar a alma humana perdida.

Assim como o homem pode investir sua força de vida no lugar errado através de seu livre arbítrio, pode também recuperar seu investimento e recuar novamente, lutando pela redenção da alma do homem. Se fosse um conto de fadas judaico, o herói batalharia pela alma de Lord Voldemort e tentaria conquistá-la para o bem.

Os judeus recitam o seguinte versículo duas vezes ao dia: "Amarás ao Senhor teu D'us, com todo teu coração [lit. corações], com toda tua alma, e com todo teu poder." (Devarim 6:5) O Talmud (Berachot 9b) interpreta a frase "com todo teu coração" como uma referência ao impulso do bem e do mal dentro do homem. Recebemos a ordem de amar a D'us com nossa inclinação para o mal, e também com nossa inclinação para o bem.

Nenhum ser humano com o poder do livre arbítrio é irredimível. A missão do homem é recuperar os aspectos negativos de sua própria personalidade. A característica do herói judeu é que ele transforma o mal em bem, e leva a todos de volta para D'us.

Nos livros de Harry Potter, sem uma batalha moral entre o mal e o bem, não há magia no mundo. Todas as coisas se limitam a ser aquilo que são e nada mais, e o mundo torna-se um lugar entediante e descolorido. Você precisa escapar para o reino da magia para tornar as coisas interessantes, e descobrir o potencial para transformar a existência.

Num mundo judaico, onde o mal pode ser transformado e regenerado, e onde o bem pode ser degradado em mal, este Mundo dos Trouxas comum está repleto de magia. A vida cotidiana torna-se uma saga heróica.

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Fontes: Rabino Natan Weisz de Aish HaToráh

Toráh – Livro Bereshit – Tradução e Explicação a cargo do Rabino Mordechai Eder Z”L.

Chovot Levavot – Os Deveres do Coração – Ibn Pakuda