terça-feira, março 29, 2022

Pêssach: Ser Livre

Ser Livre


Na noite do Sêder de Pêssach há uma idéia central que une todos os costumes, textos e tradições dispares do Sêder numa só coisa: "uma vez fomos escravos - agora somos livres."

Liberdade e escravidão aparentam ser simples opostos, cada qual definido pela ausência do outro: escravidão — a ausência de liberdade; liberdade — a ausência de escravidão. Porém, cada um destes termos tem o seu próprio sentido.

Livrar-se das algemas não significa necessariamente que alguém ficou livre. Escravidão é a condição na qual uma pessoa está sempre sujeita à vontade da outra. Liberdade, por outro lado, é a arte para atuar e realizar sua própria vontade.

Entre deixar de ser escravo e conseguir a liberdade, o indivíduo deve passar por um estágio intermediário no seu progresso, sem o qual ele não pode tornar-se verdadeiramente livre - ele deve desenvolver suas próprias qualidades internas.

O milagre do Êxodo não se completou com a saída do povo da casa da escravidão. Eles precisavam evoluir para se tornar um povo realmente livre e não apenas escravos fugitivos.

Em outras palavras, o escravo é duplamente limitado. Primeiro, por sua subjugação às vontades do outro e depois, por sua falta de personalidade e desejos próprios. A pessoa que mantém seu próprio caráter essencial nunca pode ser completamente escravizada; inversamente, a pessoa que não possui uma imagem própria independente, jamais pode ser totalmente livre.

O fim de um exílio não é por si só suficiente para constituir a Redenção - algo mais precisa ainda ocorrer.

Estar no exílio significa se entregar a um conjunto de valores, relacionamentos e um meio de vida que são estranhos ao ego individual ou coletivo.

Enquanto conservava seu caráter espiritual independente, seus princípios religiosos, sua liderança interna e seu modo de vida característico, o povo judeu nunca foi realmente escravizado. Pelo menos nunca foi realmente escravizado na dimensão espiritual da sua existência.

A escuridão e a ignorância da Idade Média não prejudicaram, alteraram ou diminuíram em nada a criatividade espiritual e a vitalidade do povo judeu exilado. O judeu deste período foi perseguido, humilhado e desprezado. Ele teve de admitir ser fraco e indefeso em várias áreas de sua vida.

Mesmo assim, seu exílio nunca foi realmente completo, pois não ele próprio não se considerava um ser desprezível, nem se considerava inferior a ninguém. Enquanto manteve seu próprio caráter essencial, seu mundo espiritual não era simplesmente um conforto para ele. Era realmente a sua casa; e nesta dimensão de sua vida o exílio não existia.

Paradoxalmente, foi a assimilação que tornou seu exílio completo, pois quando o judeu assimilado abandonou sua própria característica, ele desistiu do último pedaço da sua independência.

Assim, mesmo se ele ganhou sua liberdade como indivíduo, ele se exilou, no sentido pleno da palavra, como nação. Agora era o mundo exterior que determinava seus valores, caráter, e relações, não só num nível superficial, mas nas profundezas do seu coração. Não são mais os valores do seu judaísmo, de sua tradição, da sua Toráh, que determinam sua forma de agir e pensar. O que vale é a forma de agir e pensar dos outros...

A fim de alcançar a verdadeira redenção e não apenas um final de exílio, não basta o povo judeu deixar o "deserto das nações"; ele deve recuperar a sua própria essência, caráter, espírito, maneira de pensar e modo de vida. Pensar como judeu, falar como judeu, agir como judeu, como D’us sempre quis que fizéssemos. Somente então o povo judeu pode ser realmente livre. Somente então ele terá sido redimido.

Através de todas as leis e costumes da noite do Sêder, o que estamos realmente enfatizando é a coisa mais importante sobre nós mesmos: "Ontem fomos escravos, e hoje somos homens livres." Enquanto cumprimos os rituais e recitamos a Hagadáh, e enquanto discutimos o texto escrito e o que está por trás dele, devemos entender com ainda maior profundidade que seremos redimidos de verdade apenas quando assumirmos cumprir com a nossa necessidade de viver em nosso próprio modo - isto é, quando nos tornarmos verdadeiramente livres.