segunda-feira, janeiro 24, 2011

O Judaísmo, e o desafio do século XXI

Judaísmo na virada do milênio

Se na Europa Nazista alguém se perguntava sobre o futuro do judaísmo as perspectivas não seriam muito animadoras. Nossos antepassados que lá viviam tinham um encontro marcado com a morte, aguardando tais cruéis momento nos campos de concentração e extermínio. Que futuro poderia ser ali previsto para o judaísmo, os judeus e a tradição judaica? O desespero dominava as mentes e os corações de nossos irmãos e irmãs de todas as idades que lá estavam. Eles tinham na tarde saudades da manhã que passou; na manhã seguinte tinham saudades da tarde que passou. As coisas, como ensina a Sagrada Toráh[1], ficavam piores a cada momento. O que os olhos viam deixavam as mentes enlouquecidas.

Mas de meio século depois dos dias negros da Europa Nazista o judaísmo ressurge por todo o mundo com muita força, coragem e vida. Em poucas décadas o moderno Estado de Israel tornou-se uma nação pungente, com forte presença no cenário mundial, mesmo lutando com seus graves problemas regionais, envolvendo guerras e negociações pela paz com países árabes e o povo palestino. Por toda a diáspora as organizações comunitárias judaicas fortalecem-se e constituem centros de retorno ao judaísmo. Este retorno acontece de várias formas. Uma parcela retorna a um caminho mais enraizado com o estudo e cumprimento dos preceitos[2], reaproximando-se da corrente religiosa mais ultra-ortodoxa. Outros são despertados por propostas mais moderadas de Conservadores, Reformistas ou Neo-ortodoxos. Será muito importante avaliar, quantos filhos de casamentos mistos começam a ser integrados na vida comunitária, fazendo seu Bat ou Bar Mitsváh[3] com plena identificação como judeus, filhos de Israel, ligados à corrente da vida da Sagrada Toráh e do Conhecimento Judaico, isto depende exclusivamente dos lideres espirituais, seja qual fosse sua corrente religiosa, e das propostas educativas que cada Comunidade Judaica do mundo ofereça e seduza aos membros das mesmas.

Evidentemente a crise do desemprego no mundo também favorece o ressurgimento de movimentos neonazistas, o que exige uma atenção mais do que redobrada de todos os judeus do mundo: "calar nunca jamais". Mas estes movimentos nefastos não podem impedir o florescimento do judaísmo sucedido no final do século vinte e de milênio e na primeira década do século vinte um. Qual será o papel do judaísmo a partir do Século XXI? Um século com inovações tecnológicas dia a dia, com redes sócias no mundo virtual, comunicação à distância evitando às vezes o relacionamento mais afetivo, mais comunicativo.

Procuraremos neste breve ensaio tecer algumas reflexões sobre esta indagação.

Em todo o mundo há um questionamento da vitória do racionalismo como forma de pensamento. Até o começo do século vinte, as ciências pareciam permitir uma completa superação do "obscurantismo" da religião. A Física do século vinte, com um impressionante interplay entre teoria fisico-matemática por um lado e refinada experimentação por outro, demonstrou que a ciência pode realmente penetrar com incalculável precisão no domínio da natureza. Seguindo os caminhos da Física, surgiu a Química aliando-se ainda estreitamente à produção industrial, nascimento da High-Tech. A Biologia tomou o mesmo caminho e a bio-engenharia apresenta cenários inacreditáveis.

Quando todo este desenvolvimento fabuloso das ciências exatas, da matéria e da vida, tomava realmente fôlego para seguir uma aceleração inacreditável, pensou-se então que os seres humanos haviam superado todos os problemas e males do mundo. O homem e sua ciência exata bastavam-se no universo; a hipótese da existência de HaShem (D’us) não era mais necessária como antecipara séculos antes o grande matemático Laplace.

Ora, os sonhos iluministas de planejamento completo foram ruindo um a um ao longo do século XX. A corrida com as armas atômicas e nucleares foi à gota d'água. Os homens e as mulheres perceberam que há mais mistérios entre os céus e a terra do que sonha nossa vã filosofia, como já ensinara William Shakespeare.

O interesse pela espiritualidade reaparece em quase todo o mundo. Aquelas pessoas que ainda vivem o sonho (talvez pesadelo) racionalista talvez assistam assustados o renascimento das religiões, das crenças. Temem uma pretensa volta ao obscurantismo e o irracionalismo. Para estas pessoas, fora dos marcos da razão impera o perigoso domínio das emoções.

No caso judaico temos uma situação privilegiada. Nossa tradição não toma as ciências exatas como algo a ser evitado, refutado, anti-religioso. Conhecer a natureza é uma dadiva em nossas existências. O interessante é que a hipótese da existência de HaShem (Lit. O Nome, e a forma de expressar a D’us, dentro da liturgia Judaica) continua necessária: é nossa imagem e semelhança com o Criador, e conseqüentemente com a Criação, isto que nos permite conhecer tão profundamente a natureza. E é justamente por isto que mesmo em questões de conhecimento do mundo que nos cerca temos compromissos éticos. Não são compromissos que irão limitar ou censurar a livre pesquisa científica. Mas são requisitos que levam as pessoas a perceber as limitações dos planos meramente racionais das ciências exatas. No judaísmo a inteligência tem que partilhar sua esfera de ação com a emoção. Na tradição cabalística aprendemos muito sobre domínios supranacionais ou intuitivos como diríamos em nossos dias. Dizer que o encanto de uma formosa flor não gera conhecimento exato como na Física é obviamente uma verdade. Mas isto não diminui em absoluto o valor simbólico em se cultivar flores e tomai-las como modelo poético pleno de significado. Flores, árvores, são signos básicos na Cabaláh[4].

A tradição judaica sempre esteve próxima da investigação científica. A liberdade em se elaborar múltiplas interpretações - instrumento fundamental no desenvolvimento da ciência contemporânea - este característica de múltipla interpretação é antiga prática entre os sábios de Israel. As milenares e inumeráveis interpretações da Sagrada Toráh são sem dúvida nosso maior tesouro: nesta técnica encantada aonde múltiplos níveis de análise sobrepõe-se: gramática, numerologia, cálculos, melodias, rimas, poética, lingüística, lendas da tradição oral do povo, lógica, ciências, tudo aparece e é utilizado em nossa tradição interpretativa. Múltiplas num mesmo sábio, variadas em metodologia e abordagens, assim são as formas de se conhecer na tradição judaica.

Quando o mundo busca um reencontro entre ciência e religião para um novo milênio mais equilibrado, creio que o judaísmo tem uma experiência milenar para iluminar nossa caminhada nestes dias de tantos questionamentos.

No manancial abençoado dos sábios da antigüidade, A Ética dos Pais - Pirkê Avot[5] (Tratado Talmúdico, escrito durante o século I e II d.e.c, e fala de ensinamentos morais) encontramos uma reflexão surpreendente. Pede-nos o sábio que nos eduquemos na Toráh, que revolvamos e voltamo-nos a revolver dentro da Sagrada Toráh. E por que isto pergunta-nos o sábio? Nós poderíamos esperar uma resposta pomposa do tipo "porque é a palavra de HaShem" ou "porque é a Verdade". Mas não: o sábio do judaísmo tem uma resposta bem mais humilde: simplesmente porque não temos outra saída! Nossos sábios não são do tipo de um mandarim que alcançou realmente um plano sublime da realidade, quase o Nirvana. Nosso sábio sabe muito sobre o duro mundo da natureza aonde realmente convivem razão e emoção. Super valorizar a razão, como quis o mundo da ciência moderna, faz com que fiquemos cegos e despreparados às incógnitas e surpresas da vida na natureza. Por outro lado suprimir a razão realmente nos ensinaram os sábios é perder-se no obscurantismo na idolatria aonde as emoções tem domínio absoluto.

No judaísmo ensina-se e exigi-se um equilíbrio e não é a toa que os Tefilin[6] são usados diariamente (menos em Shabat, Sábado dia de descanso para os judeus, mandamento Bíblico, inicia do por do sol da sexta-feira até o por do sol do sábado) na cabeça e no coração. Não há judaísmo com apenas um dos Tefilim. O ritual diário da colocação do Tefilim é um momento privilegiado para lembrarmos-nos deste equilíbrio fundamental.

Na Toráh aprendemos a necessidade de ciência e de religião, não como inimigos senão como complemento de uma aproximação a nossa espiritualidade, a nossa essência. No século XXI este ensinamento será muito importante para todos nós. Saberemos uma vez mais que não há necessidade de optar-se entre a Fé e a Razão. Queremos e louvamos a D’us e a toda a Criação, assim com queremos desvendar os mistérios da natureza utilizando todas as ciências. Junto à Sagrada Toráh temos um caminho para este encontro. Um caminho já seguido em nossa tradição geração após geração por séculos e milênios. Trazer a Toráh para nossas vidas é a missão para o século XXI. Explicar como isto não significa confrontar-se com a ciência é o ponto de partida. São os desafios, que O Criador nos iluminará para encontrarmos uma vez mais as respostas necessárias. Baruch Hashem – Graças a D‘us.

Esperemos prontamente que possamos abrir nossos olhos e como expressava Hermann Hesse em seu Livro Demian, não podemos considerar nada uma casca inútil, senão pelo contrario cada signo, cada letra, palavra, ou expressão é parte de um todo. Quando tiremos as cascas de nossos olhos começaremos a enxergar e por tanto a viver.

Amén, Que Assim seja!!!


[1] Toráh (do hebraico תּוֹרָה, significando instrução, apontamento, lei) é o nome dado aos cinco primeiros livros do TaNaCh (também chamados de Hamisha Humshei Torah, חמשה חומשי תורה - as cinco partes da Toráh) e que constituem o texto central do judaísmo. Contém os relatos sobre a criação do mundo, da origem da humanidade, do pacto de D’us com Abraham e seus filhos, e a libertação dos filhos de Israel do Egito e sua peregrinação de quarenta anos até a terra prometida. Inclui também os mandamentos e leis que teriam sido dadas a Moises para que entregasse e ensinasse ao povo de Israel.

[2] Mitsvot (em hebraico: מצוות , "mandamento"; plural, mitzvot; de צוה, tzavá, "comando"). Dentro do judaismo, esta palavra se refere aos 613 mandamentos ou mitsvot dados na Toráh. 365 de ordem negativo (não farás) e 248 de ordem positivo (faz).

[3] Quando uma criança judia atinge a sua maturidade (aos 12 anos de idade, mais um dia para as meninas; e aos 13 anos e um dia para os rapazes), passa a tornar-se responsável pelos seus atos, de acordo com a lei judaica. Nessa altura, diz-se que o menino passa a ser Bar Mitzvá ( בר מצוה , "filho do mandamento"); e a menina passa a ser Bat Mitzvá (בת מצוה, "filha do mandamento").

[4] Cabaláh (também Kabbalah, Cabalá, Kabaláh) é uma sabedoria que investiga a natureza Divina. Cabaláh (קבלה -KBLH) é uma palavra de origem hebraica que significa recepção.

[5] Pirkê Avot ou Ética dos Pais (do hebraico - פרקי אבות, "capítulos dos pais") é o nome de um tratado da Mishnáh (tradição oral composto de máximas éticas dos rabinos do período mishnáico. Século II a.e.c até Século II d.e.c, finaliza com Rabi Iehuda Hanasi (Rabí Juda o Principe), o qual compilou a mesma. É uma obra basicamente de Jurisprudencia.

[6] Tefilin (em hebraico תפילין, com raiz na palavra tefiláh, significando "prece", também conhecido como filactérios) é o nome dado a duas caixinhas de couro, cada qual presa a uma tira de couro de animal kasher (ou permitido de acordo aos mandamentos da Toráh), dentro das quais está contido um pergaminho com os quatro trechos da Toráh em que se baseia o uso dos filactérios, dois no livro Shemot – Êxodo, e outros dois no Livro Devarim – Deuteronômio (Shemáh Israel, Vehaiá Im Shamoa, Cadêsh Li e Vehayá Ki Yeviachá).