Os conceitos que identificam ou marcam a identidade judaica

IDENTIDADE OU IDENTIFICAÇÃO JUDAICA?

Rabino Prof. Rubén Najmanovich


Antes de nos aprofundarmos na questão da identidade ou identificação judaica, devemos compreender exatamente o que ela significa. A identidade judaica é um conceito ou um tema que se encontra na vida intelectual de todos os judeus que necessitam definir o que lhes é importante sobre sua condição judaica. E para se chegar a essa definição, temos percorrido um caminho longo numa discussão filosófica e teológica permanente, de quase 4 mil anos de história do povo de Israel.

Nossa condição judaica nos faz procurar uma identificação com os valores judaicos, fortalecendo-nos e levando-nos a compreendê-los melhor. As dúvidas dos últimos cinco séculos a respeito do judaísmo permanecem até nossos dias. Isso porque o judaísmo é como um bolo já pronto ao qual colocamos um tanto de farinha, um tanto de açúcar e um tanto de outros ingredientes. É um bolo em que se misturam ingredientes, somando-se idioma, tradição, filosofia, leis, Bíblia, terra e história.

É verdade que o nosso povo começa com a história de uma pessoa que se rebelou diante de uma sociedade totalmente materialista, uma sociedade na qual as pessoas valorizavam as coisas vãs, as coisas materiais, as coisas visíveis, as coisas tangíveis, acima das coisas espirituais e intelectuais. Uma sociedade que tem como centro a cidade de Ur Casdim (Ur da Caldéia), o centro econômico e cultural da humanidade da época. Então, Abraão rebelou-se, e de que maneira? Contra a natureza humana, porque entendeu que a concepção humana não podia ser dirigida por conceitos meramente materiais. Rebelou-se porque se deu conta de que viviam em uma sociedade corrupta, em todos os sentidos. Ele se revoltou contra um conjunto de erros e de situações que o levaram a entender que somente através de uma chama interna se pode crescer. E, para tanto, precisamos de uma formação baseada em conceitos espirituais e psíquicos.

Ele viu uma sociedade que tinha como princípio um deus de pedra. E o que é um deus de pedra? É um deus materialista, um deus do ter, um deus do poder, não um poder de força, mas um poder de ambição. Foi a simbiose, a matéria, o vírus da ambição que conquistou Eva e Adão através da cobra (a cobra, representando a avidez incontrolável de apoderar-se do ser humano frágil, mas que tem em seu interior um Jardim do Éden). Essa ambição levou, na época, Noé a deixar-se corromper antes de ser salvo. Ele (Noé) presenciou a destruição do mundo de sua época devido à decadência moral. Essa decadência, novamente, depois do dilúvio, cresceu quando os homens, os descendentes de Noé, trataram de fazer a Torre de Babel. E qual foi o erro dos membros da Torre de Babel? Não foi apenas fazer a Torre de Babel, mas sim inventar novas coisas. O relacionamento das pessoas baseou-se na preocupação com as coisas materiais em detrimento das coisas humanas. E o que significa Torre de Babel? Ambição ou desejo de crescer materialmente, não importando qual o sentido da vida, qual o conceito intelectual que o judeu dá à vida.

Nessa sociedade, nasceu Abraão, e com ele a revolução, a mesma que abriu as portas da cidade e foi formar outra sociedade, outro sistema de vida, outra concepção de moralidade em outra parte. De Éver Haiarden, do “outro lado do Jordão”. Ele cruzou o Rio Jordão, cortou os laços com a sociedade doente e foi esse o mérito de Abraão. Foi por esse motivo que, ao atravessar para o outro lado do rio, ele recebeu o nome de Abraão, o Hebreu. E por que Hebreu? Hebreu vem da palavra Éver (do outro lado). Assim, esse nome reúne todos os seres da mesma origem e vem denominar uma pessoa que tem em mente ser um revolucionário. Um novo revolucionário espiritual da época.

Mais tarde, Moisés foi o revolucionário de nível social pelas leis, pela luta constante na busca da dignidade humana, num mundo em que a escravidão era a bandeira e a simbologia do desenrolar da sociedade de então.

Abraão foi chamado de O Hebreu e, mais adiante, Jacó adquiriu o nome de Israel ao regressar, depois de 20 anos da fuga da casa de seus pais, com sua família (filhos e demais descendentes). “E eu, Jacó, na noite anterior aguardando o encontro ao meu irmão, fiquei sozinho na beira do rio e aí se apresentou um ser e travamos uma luta durante a noite. Ainda ao amanhecer, nos encontrávamos lutando. Quando saiu o sol, ele disse que tinha de partir, mas não me deixaria ir até que eu o abençoasse, então disse: “Teu nome não será mais Jacó, mas sim Israel, já que lutaste contra a Divina Presença e venceste” (tradução livre).

O nome Israel também significa Iashar-El, reto diante de D’us.

Ele se encontrou com seu irmão Esaú e “abraçaram-se”. Isto foi um abraço de reconciliação e não de saudade. Tem de se compreender essa situação do ponto de vista místico, já que, alegoricamente, Esaú representava Edom (povo da antiguidade). Edom vem da palavra hebraica Adom, que significa vermelho, a mesma cor do sangue. E é assim que a liturgia rabínica simboliza a sociedade ocidental.

Disseram que os romanos iniciaram a cultura ocidental e chamavam a cultura de Edom. A sociedade romana fundou as bases do princípio da construção e foi o pilar da sociedade européia e ocidental. E baseou-se em quê? Em lutas, em sangue, em torturas, em massacres e, nessa sociedade européia, foi que geraram Da Vinci, Miguel Ângelo, Rembrandt e Picasso. Propagaram a tortura, a intolerância e a matança. Então, eles criaram uma palavra que não existia, “GENOCÍDIO”. A identidade judaica formou-se em função dessa luta constante de Jacó. E Jacó vem da palavra calcanhar, porque, em princípio, a vida do povo judeu nunca foi uma linha reta, mas sim uma vida torcida, não pelo seu comportamento, mas pelos desafios permanentes enfrentados através da história da humanidade.

Gostaria de esclarecer que Jacó retornou a sua terra natal, como mais adiante os judeus, depois do primeiro exílio, regressaram para construir o seu segundo templo. Nesse mesmo século, voltaram à terra de Abraão, Isaac, Jacó, David e Salomão, e trataram de conviver e compartilhar de um estado, de um governo, de uma moradia permanente para poder interagir com o mundo ocidental, visando a um mundo melhor. Mas Jacó teve uma luta e nessa luta há alguns fatos verídicos fundamentais para a continuidade e permanência do povo de Israel dentro da história da humanidade.

Depois de 20 anos de consciência pesada por ter fugido da casa de seus pais, Jacó regressou. José (seu filho mais amado), assim como Jacó, também ficou fora de sua casa durante o mesmo tempo. A dor que Jacó causou a seu pai Isaac foi representada pelo conceito místico de verdade e justiça (conceito de bondade que representou Abraão). E a mesma dor causou José ao ficar 20 anos sem comunicar-se com seu pai. José é chamado Iosef Hatzadik, (José, o justo), pois acreditava ter motivos para não se comunicar com seu pai, já que não desejava provocar seus irmãos, temendo que fossem repreendidos por Jacó, causando mais ódio ainda. Sua justiça foi esperar o momento certo para que o encontro da família fosse o mais importante. Assim, o pensamento e o sentimento do povo judeu são voltados para o encontro da família, que é o núcleo do nosso povo.

Continuamos com a idéia de Jacó. Contam nossas fontes, no livro do Gênesis, cap. 32,7: “E os mensageiros voltaram a Jacó dizendo: ‘Chegamos a teu irmão Esaú e com ele vem ao teu encontro 400 homens’”. Jacó temeu, angustiou-se muito e dividiu o grupo de pessoas que estavam com ele. O gado menor, o gado maior, os camelos, dividiu tudo em dois acampamentos. E disse: “Se vem Esaú ao primeiro acampamento, fere o segundo acampamento e ele será livre, terá liberdade, terá possibilidade de escapar”. E disse Jacó: “D’us do meu pai Abraão e D’us de meu pai Isaac. Oh! Eterno, tu que me falaste, volta a tua terra, a tua família e eu te farei o bem”. E continuou: “Eu sou muito pequeno para todas essas graças, para todas essas situações e para a fidelidade que usaste com teu servo, porque com meu báculo, com minhas coisas, com minha bagagem, cruzei este Jordão. Agora, eu me dividi dois acampamentos. Livra-me, te rogo, da mão de meu irmão, do poder de Esaú porque temo que venha me ferir. Cuida-me, como uma mãe cuida dos seus filhos, e Tu D’us, disseste: ‘Eu te farei o bem e farei que tua semente seja como areia do mar’”. Encontramos aí um conceito importante: “Que tua semente seja como areia do mar”, e que nós, os judeus, teremos de ser muitos através das gerações. O povo de Israel nunca foi e nunca será destruído. Somos como areia do mar, sempre teremos um remanescente, sempre teremos um pouco de areia em nossas mãos, um pouco de areia que cai e sai das mãos, mas o núcleo e a raiz ficam.

Esse exemplo não pode ser tomado como quantidade, mas sim como qualidade. Essa promessa também vem de Abraão antes de Jacó. E temos outro fato interessante: “E dormiu ali aquela noite e tomou do que veio a sua mão um presente para seu irmão Esaú”. A primeira coisa que Jacó fez foi tratar de enviar um presente ao seu irmão para acalmar sua ira e acalmar sua mágoa. “200 cabras, 20 machos caprinos, 200 ovelhas, 20 carneiros, 30 carneiras paridas com suas crias, 40 vacas, 10 touros, 20 jumentas, 10 jumentinhas.” Jacó mandou para Esaú presentes materiais. Ele ficou com o núcleo da sociedade, a família. Assim vamos ver o que aconteceu com o povo de Israel. Os demais povos ficaram com as riquezas e nós (Jacó) ficamos com os seres humanos. Através das gerações, o povo de Israel pagava com dinheiro, muitas vezes, para conseguir ter as pessoas e é o que chamamos de “Pidion Hanéfesh” – resgate das almas (shivuim), resgate das pessoas, porque muitas vezes havia judeus seqüestrados. E, com dinheiro, podíamos reavê-los, pois o pensamento do povo de Israel foi parte desse conceito de identificação, chamado não só conceito de identidade. Pois identidade é um papel, com dados de filiação, com data do nascimento, com endereço e com número, mas identificação é diferente, é conhecer profundamente. Ter uma razão de ser permanente, ter um porquê, ter idéia da real informação que Jacó nos mostra, que indica para nossa perpetuidade. Jacó enviou ao seu irmão Esaú “dados” materiais (informações de seu interesse) porque ele conhece de onde Esaú vem. Mas Jacó deseja dar continuidade a sua família, porque ele tem uma promessa a cumprir. A promessa de D’us a Abraão: “Serás como areia no mar”. E disse Jacó:

– É aqui que também teu servo Jacó, presente que envia a meu Senhor, a Esaú: e eis que também ele vem atrás de nós (Gêneses, 32:19).

No livro Gêneses, 32: 21, Jacó expressou o segredo de como controlar a ira e a mágoa de seu irmão. Enfim, muitas vezes foi o plano que usaram os dirigentes comunitários através da história da diáspora judaica, para poder controlar as iras dos governantes dos países por onde o povo morava. E disse Jacó:

– Eis aqui teu servo Jacó, atrás de nós. Porque disse (Jacó) para si: apaziguarei suas iras com o presente que vai diante de mim, depois olharei seu rosto; e talvez me aceite. E passou o presente diante dele e ele dormiu aquela noite e tomou suas duas mulheres e suas servas e seus onze filhos e cruzou a passagem do rio Yaboc. E tomou-os, fê-los passar o ribeiro, e fez passar tudo o que era dele. Ficou Jacó só e lutou um homem com ele, até levantar-se a aurora. E viu que não podia com ele e tocou-lhe na juntura de sua coxa, e desconjuntou-se a juntura da coxa de Jacó em sua luta com ele.

– Envia-me, que vem rompendo a aurora.

– Não te deixarei ir, salvo se me abençoares.

– Qual o teu nome?

– Jacó.

– Não, Jacó não será mais teu nome, senão Israel, pois lutaste com (anjo de) D’us e com os homens e venceste (Gêneses. 32: 21-29).

Apareceu pela primeira vez o nome de Israel. No capítulo 35:9-10, novamente D’us menciona, agora, diretamente sem enviados, que o nome dele já não é mais Jacó senão Israel. Podemos dar ainda uma explicação maior ao nome de Israel.

ISRAEL - ישראל

I (Iod - י) De Iaacob e Itzchak (Jacó e Isaac)

S (Sin - ש) de Saráh

R (Reish - ר) de Rachel e Rivcah (Raquel e Rebeca)

E (Alef com vogais é E - א): Abraham (Abraão)

L (Lamed - ל): Lea

Os três Patriarcas e as quatro Matriarcas do Povo de Israel (fontes talmúdicas)

Também podemos separar em duas partes, Iashar-El, – Reto diante (perante) de D’us porque a luta entre o desconhecido (anjo) é a luta do ser humano consigo mesmo, com suas origens. Uma luta que, constantemente, acontece na escuridão da noite, na escuridão da falta de valores morais e espirituais. Essa foi a luta que Jacó venceu ao aparecer a luz, isto é, a luz da consciência.

Isso quer dizer que é preciso enaltecer todo o esplendor dos nossos mais elevados valores morais e humanos. Esses valores são dignos da luta constante contra aqueles homens que nos desafiam dia-a-dia no mundo canibal. Mas Jacó venceu. Esse Jacó que venceu a luta é Israel. É o povo de Israel que, através das gerações, vem lutando constantemente contra os Esaús da humanidade, para que possamos ter uma identificação de nossos princípios e de nossos valores.

E o povo judeu triunfa quando na luta interior une-se numa só pessoa e nessa luta aparece a luz. Aí está o Jacó, é aí que somos o Jacó, que enfrentamos diariamente situações que nos desafiam. E essa luta pela identificação passa a ser parte integrante do povo de Israel.

Somos retos diante de D’us não porque não erramos nunca, mas porque erramos como seres humanos, somos retos porque mantemos acesa a vela permanente dos valores de Abraão, Isaac e Jacó, e isso é a identificação. Com a identidade, sei quem sou, mas não sei por que sou.

Agora estamos em um novo milênio, e precisamos compreender quão difícil é manter nossa luta, mas necessitamos lutar com outras armas, em outros terrenos, em outras situações e com outros tipos de Esaús. Devemos ir ao encontro da luz, a luz que se mostra a nós, apesar de sermos imperfeitos e ficarmos perplexos diante de muitas situações.

Sabemos que caminhamos pelo deserto da humanidade espiritual de valores, de incompreensões, mas nossa identificação nos mostra a luz no fim do caminho e essa luz é Jerusalém. A cidade entregue por Malquisedec, o rei justo, que deu a chave da cidade a nosso Abraão, pai das multidões, pai da revolta psicológica e espiritual perante um mundo corrupto.

A história de nosso povo, desse bolo chamado Judaísmo, tem uma diversificação de ingredientes como identificação de nossa origem, de nosso passado, de nosso presente e de nosso futuro. Não somos uma carteira de identidade, mas sim uma carteira de identificação, por meio da vivência dos valores na prática.

Então, temos expressado o conceito básico que resume a idéia do povo judeu, a partir do momento em que Abraão revelou a concepção intelectual monoteísta, pedra fundamental que constituiria mais adiante o povo de Israel. Esse povo, filosoficamente, teve duas linhas fundamentais para converter-se num povo eterno: “Lechaim”, “pela vida” e “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo”. Deram frutos desses embasamentos a compaixão, a compreensão, a alegria e, principalmente, o otimismo para superar as dificuldades que se apresentaram desde a antiguidade até os nossos dias. Todo o núcleo abraça os conceitos expressos que encontramos na Toráh e nela as Mitsvót = preceitos, os quais hoje em dia alguns são discutidos e interpretados de formas diferentes pelos vários setores religiosos de nosso povo.

A idéia principal dos preceitos e a razão do cumprimento deles são os benefícios que trazem quando se incorporam em nossa forma de vida, e não medimos quantitativamente o seu cumprimento, mas qualitativamente. Sintetizando, a palavra Mitzvá significa “ligar”, e por meio dela conseguimos unir-nos numa corrente milenar, que se iniciou com Abraão. E nós, hoje em dia, vamos somando elos para mantê-la forte, segura e identificável. Para exemplificar, podemos olhar no preceito do Kashrut, que quer dizer: apto, permitido. O Kashrut não só nos fala da idéia dos alimentos que podem ou não podem ser ingeridos como também filosoficamente expressa uma razão, um sentido psicológico importante de nossas vidas.

É certo que não importa o que entra, mas o que sai de nossas bocas. Então, podemos meditar sobre a origem dos alimentos e o porquê dos mesmos, e por que não misturar leite com carne. Se entendermos por que não deve sofrer um animal, por que devem ser cuidadas as leis higiênicas, aí compreenderemos que nossa essência está baseada na alimentação. Uma alimentação sã é sinal de uma psique sã. Temos, como exemplo, que a corte rabínica da cidade de Boston não considera Kasher as uvas colhidas pelos trabalhadores chicanos oprimidos, não por causa da uva, mas porque não podemos santificar um vinho que, apesar de ter sido feito de acordo com nossas leis religiosas, teve seu ingrediente principal obtido por meio de maus-tratos. Então, o Kashrut representa um preceito que ensina o ser humano a respeitar os outros seres e criaturas que habitam na terra porque, se fizermos isto, também conseguiremos respeitar-nos uns aos outros. Essa é a idéia fundamental dos preceitos, os quais identificamos com a essência pela qual o povo de Israel caracterizou-se. Porque o sentido dos preceitos reforça a idéia de “Lechaim” (“pela vida” – “to life”), que é “Amarás a teu próximo como a ti mesmo”. Elas foram as bandeiras de nossos patriarcas, que modelaram a filosofia e a ideologia de nosso povo e é com elas que nos identificamos permanentemente.

A Toráh não é lei, é educação. Assim sendo, é a identificação de nossas tradições, é o conhecimento da língua, é a ligação espiritual com nossa terra de Israel e Jerusalém, centro da espiritualidade, da luz que alimenta nossa esperança permanente, é tudo o que constitui a personalidade da educação.

Temos idéia das festas, mas nos esquecemos do valor principal e o porquê das mesmas. Isso trouxe um pêndulo educativo em nível judaico que pode ser representado pelos anjos em escadas ascendentes e descendentes no sonho de Jacó. Esse movimento oscilatório faz com que busquemos nossa identidade e não nossa identificação. E identificação é o centro, o cerne de nosso conteúdo judaico, e não a identidade que é o recipiente apenas.

Através da procura, o povo judeu converteu esse sonho de Jacó num movimento dinâmico, não como uma subida e descida, porém como uma ida e volta, representada fisicamente como um pêndulo do relógio que liga, permanentemente, com passado, presente e futuro imediato. Esse pêndulo não só se move pela força gravitacional, mas pela mesma força que exerce o povo judeu.

O povo judeu tem seu pêndulo apoiado na pedra fundamental da fé e da educação dentro de uma linguagem moderna, com energias poderosas que mantêm o movimento pendular. Podemos falar do Shabat como a essência globalizante de todo o conceito educativo e fé da existência do povo de Israel. A respeito disso, expressou-se um famoso pensador sionista dos séculos XIX e XX: “Mais que o judeu cuidou do Shabat, o Shabat cuidou do judeu”. É uma frase simples, mas com grande conteúdo. A idéia e o valor do Shabat, o cumprimento do preceito da vivência do Shabat e de todos os preceitos, os quais estão inseridos no Shabat, como o acender das velas, o kidush (santificação do vinho), os cânticos, a vivência na sinagoga, dão um sentido de reunião familiar. O Shabat, que só duas vezes é citado nos cinco livros da Toráh, como Zachor e Shamor, “lembrarás e guardarás”, traz em si conceitos básicos e primordiais de família e de vivência nos lares, como idéia de reunião de pessoas e de caridade. O Shabat educa-nos para o autocontrole e leva-nos a compartilhar, tirar a idéia materialista em que estamos submersos e termos uma idéia mais espiritual e mais humana.

Vivenciarmos e aprofundarmos a idéia do Shabat é um caminho para a identificação com o judaísmo porque, assim, quando encontramos os elementos identificáveis, podemos saber qual é a identidade judaica.

Posso dizer, no meu caso, que rezo três vezes por dia e vivo de acordo com os preceitos, assim sendo já tenho identidade, mas será que estou identificado com a essência mesma do que representa a elaboração de viver praticamente a mensagem atual da Toráh? Porque, para que eu esteja identificado com essa essência, minha identidade não tem de ser só pensar e elaborar sem compromisso, mas, pelo contrário, preciso caminhar pela estrada da vida identificando-me com os valores que fazem realmente parte essencial da formação do ser humano.

O caminho tem de ser equilibrado, e este é o mais difícil. Danças, músicas, aprofundamento histórico de nosso povo, discussões para o crescimento, e não para divisões, acompanhadas de vivências tradicionais que são manifestadas pela Toráh, fazem com que possamos ser judeus equilibrados, identificados e com identidades próprias. A mensagem atual é criada pelo pensamento de nosso célebre Maimônides, que expressou em seu livro “Mishnê Toráh”, no capítulo Hilchot Dehot (leis do comportamento), “que todo segredo passa pela continuidade e harmonia da vivência de nossos valores identificáveis e conseguir um equilíbrio em nível humano e em nível judaico”. Esse é o segredo para podermos começar a transitar numa estrada que seja a continuidade dos valores de Abraão, Isaac, Jacó, Moisés, David, Maimônides e Baal Shem Tov, Hertzl, além de outras figuras que marcaram e criaram um selo. Selo este que nos identifica como um povo de características singulares. Somos o povo escolhido, porque deixamo-nos escolher.

“Escutem, filhos, a instrução do pai, estejam atentos para adquirir o entendimento... Não abandonem os ensinamentos... Segura teu coração nas minhas palavras, guarda os meus mandamentos e vive” (Livro dos Provérbios, cap. 4). Temos de conseguir educação, muita fé, equilíbrio e, principalmente, com o tempo, uma identificação com nossos valores, com nossos preceitos, com nossa história, com nossa tradição, com nossa cultura bela e rica. Uma identificação tão forte e durável como a Toráh entregue no Monte Sinai aos nossos antepassados, que a colocaram como garantia aos nossos filhos e a todas as gerações, a fim de que eles pudessem ter uma identidade judaica.

Esperemos que essa identificação seja tão forte que não necessitemos de “carteira de identidade”, porque só nossa vivência vai conseguir que a identidade seja permanente.

Palavras Finais

Escrever a respeito da identidade judaica nos depara com os questionamentos que o mundo judaico vem lidando desde tempos remotos.

A assimilação é um grave e terrível desafio que tem preocupado nossos sábios, educadores e lideres em todas as épocas. Este trabalho tem a intenção de contribuir para que encontremos uma luz que nos permita sair da obscuridade.

Identidade se obtém quando nos identificamos, quando estamos cientes dos verdadeiros valores de nossas vidas, que fazem parte do núcleo principal do judaísmo.

Somos parte de uma cadeia milenar, na qual cada elo se fusiona com o anterior e serve de ligação com o próximo. Não podemos deixar que um deles se perca ou se abra e que a corrente seja destruída.

Viver o judaísmo é como fazer um chá. Nossos antepassados sabiam muito bem... Cada geração tomava seu saquinho de chá e preparava a sagrada infusão. Os pais se orgulhavam de ensinar a seus filhos a preparar seu próprio chá. Mas ocorreu, há um tempo não muito longínquo, que o bisavô não pôde ensinar seu filho a fazer chá, porque este abandonou a Europa em busca de paz e pão e seu pai só conseguiu lhe dar um saquinho já usado.

O avô, imigrante, trouxe o saquinho de chá de seu pai e com ele viveu seu judaísmo o melhor que pôde. As urgências por sobreviver em um novo país lhe subtraíram as oportunidades para aprender a fazer chá por sua conta.

Não teve outro remédio senão entregar a seu filho o mesmo saquinho que ele tinha recebido de seu pai. A cor e o sabor desse chá se diluíam cada vez mais. E já ficou muito difícil para o bisneto apreciar no chá a essência que valesse a pena ser preservada e transmitida.

Hoje, graças a D’us, temos paz e pão. É o momento de desfrutar de nosso elixir espiritual. Vivê-lo com um saquinho novo, para voltar a apreciar seu sabor, sua cor e seu formoso aroma.

Porto Alegre, Brasil – 30/3/2011