Bioética e Judaísmo: 2ª parte.

Bioética, Medicina e Judaísmo.
Introdução

      A exposição que se segue não pretende ser exaustiva acerca dos temas apresentados sobre bioética embora pretenda dar uma visão das posições adotadas, de forma geral, pelo judaísmo. As diferentes correntes judaicas só serão mencionadas caso suas posições sejam muito divergentes do judaísmo normativo. Abordando tais questões pelo viés mais ortodoxo pretendemos estabelecer como clara a existência de uma ética judaica, cuja presença é sentida para além das divergências sobre a prática da lei judaica entre os diversos movimentos.

As citações são, em sua maioria, de textos tradicionais, cujo título em hebraico será mantido. Portanto, ao tratarmos do Pentateuco iremos utilizar sua terminologia tradicional, Torá, mas os ver-sículos específicos terão o livro indicado com o nome em português visando maior acessibilidade ao leitor e à leitora. A distinção entre Torá e halachá é que a primeira é a fonte da segunda, que é a sistematização e a ampliação daquilo que está na primeira e que continua até hoje, seja em codificações das leis da Torá e do Talmud (como o Shulchan Aruch), seja em responsum rabínicos. As discussões e a ampliação da Torá estão, em grande parte, escritas no Talmud (obra concluída no século V, composta de duas partes, Mishná e Guemará) mas não se limitam de forma alguma a ele. Além disso, parte importante da tradição judaica se encontra na coleção de obras denominada mi-drash que são as interpretações dos rabinos acerca do texto bíblico. Muitas histórias de vida de rabinos também estão coligidas no Talmud e nos midrashim (plural de midrash). É deste triângulo (Torá, Talmud, halachá) que saem as decisões rabínicas acerca das questões atuais. Optamos por colocar o termo mitzvá no original em hebraico, para ressaltar que seu espaço semântico é maior do que o termo mandamento pode sugerir, saindo da mera esfera da decisão legal e ampliando-se para obrigação moral.
Os temas que serão abordados através da formulação de uma pergunta clara e são, em linhas gerais, os seguintes: transfusão de sangue, doação de órgãos, aborto, inseminação artificial, eutanásia, saúde do idoso, clonagem e terapia genética.
          
I -       A importância da vida e outras afirmações básicas do judaísmo
            Um dos maiores valores na tradição judaica é o valor intrínseco da vida humana, que é comparada com o universo: "Quem salva uma única alma é como se salvasse todo o universo" (Mishná San'hedrin 19b). Para a salvação de uma alma, todas as proibições contidas na Torá, menos três, estão suspensas. Estas três são idolatria, incesto e homicídio (o suicídio recai numa categoria particular de homicídio). A ação positiva do ser humano sobre a Terra é expressa pelos seguintes trechos: "O mundo se mantém sobre três coisas: o estudo da Torá, o serviço religioso e os atos de benemerência" (Mishná Avot 1:2). Ou seja, o mundo não existiria se nós, seres humanos, não agíssemos positivamente em relação a nós mesmos: na esfera pessoal, buscando crescimento espiritual no estudo da Torá; na esfera transcendente, buscando crescimento espiritual na relação com Deus; finalmente, na esfera interpessoal, buscando crescimento espiritual nas relações pessoais que estabelecemos ao longo da vida. E esta exigência da ação no mundo é ainda mais reforçada pelas palavras "não confiamos em milagres" (Kidushin 39b-40b). Esta última frase é muito aplicada no contexto patológico, incitando-nos a ir em busca daquilo que há de mais avançado na medicina para conseguir a salvação de uma vida humana. Além disso, a crença em que Deus é único e que todas as coisas da nossa vêm Dele é expressa todos os dias pela bênção "Bendito é Você, Eterno ... que faz tudo o que eu preciso" e relembrada no livro de Josué (23:15) "E acontecerá: da mesma forma que todas estas boas coisas aconteceram para vocês ... assim trará o Eterno todas as coisas más". É a partir destas considerações preliminares que iremos abordar os temas a serem expostos.
                                                                                                                                
II -     A transfusão de sangue e a doação de órgãos
            A transfusão de sangue não é de forma alguma uma questão polêmica no judaísmo. Ainda que esteja escrito na Torá que "o sangue é a alma"(Levítico 17:14) esta afirmação não pode ser encarada como problematizante para este caso pois nossos rabinos a inserem na questão contextual geral deste versículo, que é a das leis alimentares - daí vem a proibição, para os judeus, de usar sangue como fonte alimentar, o que implica numa preparação especial da carne a ser consumida. Como a doação de sangue, especialmente nos dias de hoje, oferece risco mínimo para o doador e benesses máximas para o receptor, ela é tida como uma mitzvá muito importante para todas as correntes judaicas, sendo amplamente estimulada. Da mesma forma, ainda que seja mais dolorosa, a doação de medula óssea é encorajada enquanto mitzvá.

A doação de órgãos nos coloca em um terreno mais complexo. Existem dois tipos diferentes de doação: a que pode ser feita em vida e a que pode ser feita depois da morte. O primeiro tipo en-globa a doação de parte de um órgão ou tecido, a saber, pulmões, rins, sangue, medula óssea ou parte do fígado. Este tipo engloba duas questões básicas: a do perigo para o doador e a do recebi-mento de pagamento pela doação de um órgão ou tecido. Já a doação de órgãos após a morte apresenta outras questões: a primeira é em relação à permissividade ou à obrigatoriedade de consentir à doação de órgãos durante a vida. A segunda é em relação à permissividade ou à obrigatoriedade de carregar consigo alguma forma de consentimento à doação. A terceira questão tem a ver com a vontade da família e até que ponto é necessário ou obrigatório aquiescer à ela.

Vamos, portanto, à primeira delas:
É necessário correr um risco para salvar uma vida? Se sim, qual a gravidade do risco ao qual é necessário se submeter para salvar uma vida?
O Talmud considera que encontrar uma pessoa correndo risco de vida é como encontrar algo que essa pessoa perdeu. Como a halachá impõe a devolução de objetos encontrados a seu dono, a segurança é vista como algo que deve ser devolvido: "Você deve devolver a ele o corpo dele". Além disso, a famosa frase "você não ficará impassível frente ao sangue de seu próximo"(Levítico 19:6) é encarada como "você deve fazer de tudo, tomar todas as precauções para evitar que uma desgraça aconteça". O Talmud exemplifica com a visão de alguém se afogando ou sendo atacado por animais selvagens ou por saqueadores. As obrigações impostas pela segunda frase são chamar outros para ajudar, gastar dinheiro para resgatar a pessoa em perigo, usar os seus conhecimentos e mesmo arriscar-se. Porém os comentaristas fazem uma distinção - o risco deve ser o mesmo risco que alguém estaria disposto a correr para ganhar a vida, certamente não mais de 50%. Se há a possibilidade do pretenso "herói" tornar-se uma segunda vítima, ele não tem qualquer obrigação de arriscar-se. Além disso, quem gostaria de correr tal risco não é visto com bons olhos: há a distinção entre um ato no-bre que deve receber um elogio (midat hassidut) e um ato ainda que bem intencionado de pura estupidez (hassidut shotá). Portanto, se por um lado é necessário fazer de tudo, inclusive esforço físico, doação de dinheiro, fazer contatos, levantar fundos e mesmo correr um certo risco pessoal para salvar uma vida, não há a obrigação de sofrer ou doar um órgão que não se regenera, mesmo que o risco não seja intenso (1). Contudo, quem quiser fazê-lo não é considerado um estúpido bem inten-cionado e sim alguém com coragem e coração nobre.
Queremos aqui ressaltar uma profunda divergência - há grupos de ortodoxos (não toda a ortodoxia judaica) que afirmam que tudo o que foi exposto acima e tudo o que será exposto abaixo só se aplica em relação a um(a) judeu(ia). Contudo, os grupos progressistas e mesmo parte da ortodoxia não aceitam de forma alguma esta visão que consideram preconceituosa e contra o espírito da Torá.
Até que ponto é permitido, na halachá, receber pagamento por ter doado um órgão? A venda de órgãos e tecidos é permitida ou proibida?
Há um princípio geral que afirma que qualquer mitzvá da Torá em relação a outra pessoa deve ser cumprida sem o recebimento de qualquer pagamento. Assim, não se deve cobrar nada por devolver algo que alguém perdeu, não importa quanto trabalho e dificuldade isto envolveu. Porém, se foi necessário abandonar um dia de trabalho é possível receber uma compensação.
Como foi explicado, contudo, não é obrigatório doar um órgão e, uma vez que não é mitzvá, é possível receber pagamento. Porém, outras regras se aplicam. Na ocorrência de um acidente, o causador deve pagar ao acidentado compensações, incluindo honorários médicos e procedimentos cirúrgicos além do tempo que o acidentado ficou sem trabalhar ou a perda de habilidade de trabalhar, além de outras. Se o acidentado decidir que não deseja receber a compensação isso não tem importância - ele deve recebê-la pois pela halachá é uma mitzvá, cada parte do corpo tem um valor e a isenção não é possível. Com isso duas conseqüências recaem sobre a questão da venda de órgãos. A primeira é que não há, de forma alguma, razão para banir ou condenar eticamente o doador que decidiu receber pagamento por sua doação - ele está em seu direito de receber por uma parte de seu corpo. Contudo, é importante perceber que só o doador pode receber o pagamento e este deve ir, integralmente, para suas mãos. Qualquer intermediário entre o doador e o receptor recai na categoria discutida acima de ajudar a salvar a vida de alguém - é mitzvá e, portanto, não é permitido que o intermediário receba qualquer pagamento por isso.
É obrigatório ou permitido consentir à doação de órgãos em caso de morte? É permitido ou obrigatório carregar um cartão de doador?
Os limites da posse do próprio corpo por uma pessoa são colocados claramente pela halachá: suicídio deliberado, autopunição e correr riscos. A doação de órgãos para salvar uma vida ou mesmo de sangue e medula óssea mesmo que o paciente não corra risco de vida não recai sob a proibição de autopunição, pois há uma razão muito maior em jogo. Como conseqüência, pode-se afirmar que há a permissão para escolher doar órgãos em caso de morte. Contudo, novamente, não há obrigação uma vez que, apesar de meritório, não é uma mitzvá. Há igualmente a posição de que, se alguém vem perguntar se deve doar seus órgãos em caso de morte, essa pessoa deve ser encorajada, uma vez que, ainda que não seja uma mitzvá, este ato será contado como crédito quando Deus a julgar.
A questão de portar do cartão de doador provoca controvérsias. Há quem diga que é proibido, uma vez que o cartão só é útil em casos de morte súbita e, como não é desejável que uma pessoa "abra sua boca às desgraças"(Talmud, Tratado Brachot 9a), ninguém deve expressar nem mesmo a possibilidade de tal ocorrência. Por outro lado, uma vez que alguns órgãos e tecidos dependem da remoção imediata para salvar uma vida, há autoridades que permitem carregar o cartão de doador com base na idéia de que quase todas as proibições estão relevadas para a salvação de uma alma.
Até que ponto é necessário ou obrigatório aquiescer à vontade da família?
A honra aos mortos (kivud-hamet) é uma das muitas mitzvot às quais o povo judeu se sub-mete. Portanto, a família deve se posicionar enquanto parte interessada em salvaguardar a honra de seu falecido e cabe aos médicos, por sua vez, respeitar tal honra. Isto é ampliado da seguinte forma: se o(a) falecido(a) expressou seu desejo de doar seus órgãos abertamente ou se há uma base razoável para saber se, se alguém lhe tivesse perguntado ele(a) o teria desejado, é mitzvá acatar sua von-tade. Contudo, se ela(e) abertamente expressou sua oposição à doação de órgãos ou há uma base razoável para saber se, se alguém lhe tivesse perguntado ela(e) teria se oposto, é igualmente mitzvá acatar sua vontade. Mas se o desejo da(o) falecida(o) for totalmente desconhecido, a família deve aquiescer à doação, uma vez que pelo menos a salvação de uma alma está em jogo. Em relação ao restante do corpo, a honra ao morto continua sendo uma mitzvá e, portanto, deve ser enterrado de maneira digna.
                                                                                                                              
III -   Aborto, redução de fetos em caso de gravidez múltipla e inseminação artificial
            Em que condições, se alguma, o aborto é permitido?
A visão do judaísmo tradicional nem bane completamente o aborto nem o libera totalmente - em algumas circunstâncias o aborto chega a ser absolutamente obrigatório. A razão para isso é que o feto, ainda que tenha sua existência protegida pela halachá, não é considerado prioridade caso essa mesma existência entre em conflito com a vida de uma pessoa já nascida.

De forma geral, se a vida da mulher for colocada em perigo pelo feto, seja durante a gravidez, seja com seu nascimento, o feto é considerado rodef, ou seja, um perseguidor atentando contra a vida da mãe. Contudo, conforme explica a Mishná (Tratado Oholot 7:6) se for possível salvar a vida da mãe com a amputação de um membro do feto, o aborto é proibido. Além disso, se as complicações do parto iniciaram-se após o surgimento da cabeça do feto, a vida da criança é considera-da igual à da mãe e, como os dois são considerados perseguidores um do outro, não é possível escolher entre uma das duas vidas (Shulchan Aruch, Hosen Mishpat 425:2).
Mas outras considerações se colocam neste problema. Há a questão de que, além de perigo físico, o nascimento de uma criança pode ocasionar quadros psicológicos graves. A halachá reconhece isso, contudo, o grau de doença mental necessário para justificar um aborto não foi estabelecido com precisão suficiente para que seja possível traçar um quadro definitivo. Nestes casos, uma ou mais autoridades no assunto devem ser consultadas. Neste sentido é avaliado o aborto em casos de estupro ou incesto. Considera-se que o peso emocional do nascimento e da criação de uma criança concebida em tais circunstâncias é muito grande para a mãe suportar. Em casos de adultério, os problemas de aceitar o aborto são muito maiores do que apenas a existência da criança (que tem sua vida religiosa marcada pela condição de mamzer, bastardo/a, sendo proibida de casar-se com judias/eus, entre outras proibições - esta condição também é aplicada a crianças nascidas de incesto) e chegam a tocar na questão da facilitação de um crescimento na lassidão moral da sociedade como um todo.
O avanço da medicina nos possibilita sabermos com exatidão se o feto é portador de alguma doença. Neste caso, a linha geral da halachá é que o valor que nós damos à vida não varia de uma vida para outra, não sendo relativo. Portando, a maioria dos rabinos proíbem o aborto mesmo em caso de má formação fetal - há alguns (2) que chegam a proibir, inclusive, que os exames para isso sejam feitos de forma a impedir que os pais requeira o aborto. Contudo, há rabinos (3) que permi-tem o aborto até o terceiro mês de gravidez caso o feto seja portador de uma doença ou deformidade que tornará sua vida e a de seus pais um sofrimento constante. Estes mesmos rabinos permitem o aborto até o sexto mês caso seja descoberto que o feto carrega um defeito genético letal, como a Síndrome de Tay-Sachs.
Em caso de gestação múltipla , é possível a redução de fetos ?

Em tratamentos contra infertilidade, uma das complicações é a concepção múltipla de fetos. Uma das primeiras questões é se esse tipo de tratamento ou outros, que envolvem o implante de vários fetos no útero, abrindo portanto a possibilidade da situação se tornar muito complicada, são permitidos. Mas essa questão ainda não resolvida. A maioria dos rabinos aceita a idéia de reduzir o número de fetos de forma a aumentar não apenas a chance de sobrevivência da mãe mas também a dos outros fetos.

Inicialmente, não é possível assumir que os fetos são perseguidores uns dos outros uma vez que ainda não são considerados vida - uma passagem do Talmud chega mesmo a afirmar que um feto com menos de 40 dias é maim bealma, apenas água.

Contudo, não se escolhe entre vidas - a regra geral explicada acima. Um trecho interessante do Talmud conta que afirma que "se um grupo de pessoas diz a outro grupo 'dê-nos um de vocês para que o matemos e os outros serão salvos' é proibido escolher um, mesmo se todos forem mortos". Porém Rabi Menachem Hameiri afirma que "se uma dessas pessoas estiver com uma doença grave que a levará à morte em menos de um ano, é possível entregá-la e ninguém será culpado de assassinato" (Talmud de Jerusalém, Tratado Trumot 8:10). Considera-se que, uma vez que todos os fetos morrerão em menos de um ano, pode-se reduzir seu número. Mas muito cuidado deve ser tomado para que isto seja feito o mais cedo possível. A quantidade de fetos a ser abortada é uma questão médica que varia de caso a caso.
Quais as implicações da inseminação artificial, se permitida?
Por incrível que pareça, quando lemos no livro de Eclesiastes "não há nada de novo sob o sol"(1:9) podemos pensar na inseminação artificial dentro do judaísmo. Os sábios do Talmud, há 1500 anos atrás, levantaram as questões éticas de algo como a inseminação artificial, ainda que o termo não tivesse sido cunhado.

Dado que um sumo-sacerdote deve casar-se com uma virgem(Levítico 21:13), um rabino pergunta: poderia ele casar com uma virgem grávida? É claro que os outros perguntam a ele - como isso seria possível? A resposta do rabino é que sim, seria possível, se a mulher tomasse banho nas mesmas águas nas quais um homem teria emito esperma. E um midrash afirma que um grande rabino foi concebido por este processo - inseminação acidental de uma moça por seu pai através da água de banho. Nada, contudo, fez com que essa criança fosse menos legítima: a condição de mamzer não se aplica por não ter havido contato sexual propriamente dito.

Há dois tipos diferentes de inseminação artificial - o sêmen pode vir do cônjuge ou de um homem desconhecido. No primeiro caso, a maioria dos rabinos encara a criança como descendente legítima do pai, ainda que alguns rabinos afirmem que o pai não cumpriu com suas obrigações de procriar. Ao problema do doador ser desconhecido a maioria dos rabinos se opõe muito abertamente pois, apesar de não haver a transgressão da proibição do adultério, isto nos leva a problemas acerca da herança - pois tecnicamente a criança não é considerada descendente do marido da mãe e portanto, sem direitos - e da possibilidade de incesto - ao não saber a identidade do pai, a criança poderia casar-se com um(a) meio(a) irmão(ã). Ainda, há a preocupação com a manutenção da unidade familiar e questões são levantadas acerca da posição emocional de uma criança feita por "produção independente" da mãe.
   
IV -    Eutanásia, suicídio acompanhado e saúde do idoso
            Eutanásia é um termo grego que quer dizer "a boa morte". A idéia de que a morte possa ser boa ou que seja possível "morrer com dignidade" é estranha ao judaísmo. Ainda que haja a possibi-lidade de kidush hashem, deixar-se matar para não converter-se a outra religião (este termo também é usado para descrever o acontecido nos campos de extermínio nazistas), a eutanásia como é vista hoje tem grande desaprovação da maioria dos rabinos em particular por lembrar aos judeus as euta-násias praticadas durante a Segunda Grande Guerra. Especialmente depois dessa traumática experiência coletiva, a idéia de que a manutenção da vida é mais digna do que o morrer ficou ainda mais em evidência - ou, como o salmista diz: "os mortos não louvam a Deus"(115:17). Porém há um complicador: no Talmud encontramos uma lei que afirma que uma pessoa que recebeu sentença de morte deve receber uma poção para ter seus sentidos nublados antes de que a sentença seja cumpri-da e ela não sofra com a dor. O texto termina com a frase "deve-se escolher para ele uma morte agradável" e para texto oferecido como prova desta decisão é "e amarás teu próximo como a ti mesmo" (Lev. 19:18). Ou seja, mesmo se nossa religião proclama a santidade da vida, ela deve tratar a questão da "morte agradável" pois isto é mandado pela mitzvá de amar o próximo.
Contudo, há uma mitzvá positiva dupla que tem a ver com a relação médico-paciente: o médico tem a obrigação de curar o paciente e o paciente de permitir-se a cura. Esta mitzvá vem do seguinte versículo da Torá: "guarda-te a ti mesmo, e guarda bem a tua alma"(Deuteronômio 1:4). O médico cai na obrigação de restaurar o "corpo perdido" do paciente "com seus conhecimentos", além de estar sujeito à lei "você não ficará impassível frente ao sangue de seu próximo", conforme vimos acima na discussão acerca da doação de órgãos. Mas há a obrigação do paciente de obedecer aos desígnios do médico. Como exemplo, se um médico afirma que, para salvar a vida, o paciente deve entrar em um tratamento que infrinja as leis de shabat (Sábado) e ele se recusa, ele é tido como um hassid shotê (um piedoso estúpido) e "Deus cobrará o sangue das mãos dele" e não do médico. Ou seja, é uma mitzvá, e não um direito, curar-se e proteger a própria vida. Assim, como princípio geral temos que, a partir do momento que o médico pode salvar a vida do paciente, sua obrigação é maior do que qualquer recusa do paciente de receber o tratamento. Mas - e se o médico não tem meios de salvar a vida do paciente? Poderemos, portanto, expressar nossa pergunta assim:
Há algum limite para o dever do médico em preservar ou prolongar a vida do paciente, seja pelo respeito aos desejos do paciente ou pela dor ou pelo sofrimento ou por qualquer outra razão?

A idéia da eutanásia pode ser dividida em cinco tipos diferentes: voluntária (o paciente pede para morrer ou aquiesce à recomendação médica que a morte é a única opção; se o paciente, apoiado pelo médico que lhe dá as condições, termina com sua própria vida - isso é o que hoje chamamos de suicídio acompanhado e é um subtipo da eutanásia voluntária), não-voluntária (um responsável pelo paciente aquiesce à recomendação médica), involuntária (alguém, não responsável, toma um atitude sem a aprovação do paciente ou de seus responsáveis e termina com a vida do paciente), ativa (o médico toma a frente do processo e apressa a morte do paciente), passiva (envolve retirar progressivamente o suporte de aparelhos, de forma que o paciente morra de sua doença e não da falta de aparelhos).
A eutanásia voluntária é tida como suicídio. O suicídio é uma forma muito mais trágica de homicídio, segundo o rabino Bleich, em muitos aspectos. O primeiro e mais contundente é que não há qualquer tipo de reparação ou arrependimento possível. Além disso, é uma expressão de com-pleta falta de crença em uma outra vida, que é um dos pilares fundamentais da fé judaica e uma afronta ao fato de que a decisão de morrer não foi posta em nossas mãos: "Contra sua vontade você nasceu e contra sua vontade você morrerá" (Mishná Avot 4:22).
A respeito da eutanásia ativa, seja voluntária, não-voluntária ou involuntária, a halachá é inequívoca:
                        "Uma pessoa na categoria de gosses (4) qualquer um que a toque de forma a apressar sua morte é culpado de assassinato. Uma pessoa que mata uma outra, esteja ela sadia ou doente e morrendo, mesmo se matou alguém na categoria de gosses, é punível com a pena capital"(Shulchan Aruch, Ioreh Deah 339:1).
           A regra não permite exceções, não importa se o paciente sofre ou mesmo se ele consentiu. A eutanásia passiva é a que nos irá dar mais campo para discussão. Devemos considerar, inicialmente, o seguinte trecho do comentário de Rabi Moshé Isserles (Cracóvia séc. 16) ao trecho anterior do Shulchan Aruch:
                        "De forma semelhante é proibido fazer com que uma pessoa que está morrendo morra mais de-pressa, como exemplo, um gosses que está assim há muito tempo e não consegue se separar do mundo dos vivos: é proibido remover o travesseiro dele, mesmo que pessoas afirmem que algumas penas de determinadas aves estejam causando tal demora, da mesma forma é proibido movê-lo ou colocar sob sua cabeça as chaves da sinagoga para que ele parta.
Porém, se há algo impedindo que ele parta, seja um barulho perto de sua casa como o de um corta-dor de madeira, seja se colocaram sal sob sua língua, e essas coisas estão impedindo-o de partir - elas podem ser removidas, uma vez que não há um ato voluntário como tal, apenas a remoção do hassarat monea, o obstáculo." (Comentário de Rabi Moshé Isserles ao Shulchan Aruch, Ioreh Deah 339:1)
            Perceba-se que a distinção que se faz aqui não é entre um ato e uma omissão e sim entre du-as ações - uma que apressa a morte do paciente e outra que é meramente a remoção, no ambiente onde o paciente se encontra, de algo que impede que a alma do paciente parta. Esta passagem aponta para uma questão extremamente dolorosa para a família de uma pessoa que está morrendo mas cuja morte é impedida pelo uso de máquinas que mantém o corpo funcionando através de respi-ração artificial - é possível desconectá-la? Pela analogia que podemos fazer com comentário de Rabi Moshé Isserles, sim - a partir do momento que se torna claro para os médicos que não há qualquer forma de curar o paciente (5).
É possível cessar o tratamento de pacientes próximos à morte?

Uma autoridade do século 18, o rabino Iaacov Emden escreve em uma responsa que se o paciente sofre de uma doença identificada cujo tratamento é conhecido e testado, os médicos são obrigados a fazê-lo passar pelo tratamento, mesmo que o paciente afirme que prefere morrer a tratar-se - o elemento da dor não é relevante neste caso.
Já no século 20, o rabino Moshé Feinstein legisla que mesmo se só houver uma grande chance de que o tratamento funcione, os médicos estão obrigados a isso e que mesmo se a chance for pequena, mas ela existir, é possível correr o risco para tentar conseguir curar-se. Na mesma corrente, o rabino Shlomo Zalman Auerbach afirma que, se um tratamento que não vai curar um paci-ente mas só prolongar seu sofrimento não pode ser mantido, um tratamento que causa um aumento da dor e do sofrimento deve ser interrompido. Este não é o caso de um estado vegetativo permanente no qual o paciente não sofra e não seja mantido por aparelhos.
Em caso de tratamento com drogas, uma distinção é feita entre o tratamento que tem como objetivo prolongar a vida do paciente ainda que temporariamente e o que tem objetivo de apenas diminuir a dor e o sofrimento. Para o rabino Moshé Feinstein, é preferível o último tratamento, desde que ele não diminua a vida do paciente em nem mesmo um dia (o que levanta questões acerca da permissibilidade do uso de morfina, que diminui progressivamente a capacidade respiratória do paciente).
Quais as conseqüências da aceitação do suicídio assistido?
Ainda que se admita que para alguém considerar a hipótese de terminar com sua vida pre-maturamente ele/a deve estar sentindo uma dor muito forte, os rabinos encaram este ato apenas como mais um tipo de suicídio, apenas agravado pela presença do médico cujo dever é salvar vidas e não apressar seu fim.
Na Holanda, de acordo com o psiquiatra Herbert Hendin onde a eutanásia com o consentimento do paciente não é crime, as distinções entre a real vontade do paciente, a da família, a do médico e a da sociedade se tornam cada vez menos claras. Além disso, a impressão que poderíamos ter é a que a legalização do suicídio assistido afeta apenas quem escolhe morrer, o que é uma falácia pois quem escolhe permanecer vivo não terá a assistência necessária - o que inclui não apenas aqueles sofrendo de doenças terminais mas também os idosos. Todos serão vistos, mais cedo ou mais tarde, como inúteis à sociedade. É muito complexo dar a possibilidade de um ser humano, um médico, decidir qual o valor de uma vida humana. Infelizmente a história humana já viu muitos povos sofrerem com o racismo e a eugenia feita através da eutanásia de deficientes físicos e/ou mentais.
Entre os muitos casos de martírio, o Talmud nos conta da morte de Reb Chanina ben Teradion, executado por romanos. Por ensinar a Torá, algo que era proibido, ele foi morto sendo queima do vivo amarrado com um rolo da Torá. Seus alunos estavam presentes e perguntaram a ele o que ele via, ao que ele respondeu que enquanto o rolo da Torá se consumia, as letras flutuavam no ar. Seus alunos começaram a pedir que ele inalasse mais e mais a fumaça, de forma a morrer mais de-pressa e sofrer menos e o rabino respondeu: "que Quem me deu a minha alma a pegue de volta - aprendemos que ninguém pode machucar-se propositalmente". Esta, certamente, é a opinião do judaísmo acerca do suicídio.
                                                                                                                           
V -      Genética e clonagem
           É permitido beneficiar-se das descobertas da engenharia genética e da clonagem?
Pesquisas em genética são, de forma aberta e positiva, aceitas pelo judaísmo - principalmente no que se refere à determinação da paternidade. Já nas fontes mais antigas encontramos algum material sobre genética, ainda que não com esse nome mas, certamente, com as regras da ge-nética mendeliana sendo trabalhadas por Jacó (Gênesis 30:22 e seguintes). A hemofilia é descrita com sua transmissão genética no Talmud (Ievamot 64b), onde lemos que os sábios reconheciam que a mãe transmitia a doença mas não sofriam dela. No mesmo trecho, os homens são proibidos de se casarem com mulheres de família de epilépticos, para que a doença não fosse transmitida para as gerações seguintes. O comentarista Rashi expande esta proibição para todas as doenças de caráter hereditário - o que pode representar a primeira forma de eugenia, desta vez possível. De forma completamente divergente do pensamento da idade média, o Talmud já afirma que há três parceiros na criação de um ser humano: Deus, a mulher e o homem, colocando que a mulher e o homem fornecem partes que se complementam para a formação de um corpo (Nidá 31a). Em seu testamento ético, Reb Iehudá o Piedoso (século 10) proíbe casamentos entre primos de primeiro grau e entre sobrinhas e tios, dada a freqüência de nascimento de crianças defeituosas de tais casamentos. Contudo, tais casamentos são expressamente encorajados no Talmud (Ievamot 62b e San'hedrin 76b). O sábio Maimônides reconhece defeitos hereditários e genéticos e afirma não poder curá-los (cf. Mishne Torah, Deot 4:20).
As buscas por tratamentos na área de saúde que aprimorem ou possibilitem a cura de seres humanos são vistas como divinamente ordenadas por vários rabinos. É assim que Nachmânides no século 13, e o Rabino Samsom Raphael Hirsch, no século 19, interpretam o versículo "encham a terra e a dominem"(Gênesis 1:28). Além disso, como alegado pelo Rabino Azriel Rosenfeld (6) , a Torá não proíbe ao processo que não são vistos a olho nu - por exemplo, as leis alimentares não são aplicam a microorganismos. A terapia genética se descoberta como solução para casos como a doença de Tay-Sachs é abertamente estimulada.
Contudo, o rabino Moshé Hershler nos admoesta contra não nos tornarmos completamente cegos pela engenharia genética e pela terapia genética, lembrando que elas não podem ser trata-mentos que diminuam a vida do paciente. Este rabino proíbe a terapia e a engenharia genéticas com base na falta de crença nos caminhos divinos e dá como prova o texto de Levítico 19:19 - "não permitirás que se ajuntem misturadamente os teus animais de diferentes espécies; no teu campo não semearás sementes diversas, e não vestirás roupa de diversas linhas misturadas", mas tal opinião é contradita pela maioria dos rabinos.
Clonagem é um processo até hoje não muito bem claro e que não chegou a ser reprodutível em outros laboratórios que não o inicial (7). Contudo, alguns rabinos já começaram a estudar esta questão e dão alguns pareceres. A priori, o papel do ser humano é melhorar o mundo. Além disso, nada do que não está proibido pela Torá é proibido, contanto que três regras sejam observadas: não pode ser feito caso haja alguma proibição descrita na lei judaica, não pode trazer um resultado irreversível que seja proibido, o ato deve beneficiar a raça humana como um todo, ou pelo menos trazer mais benefícios do que dano. Não há qualquer ponto que apareça como uma proibição para a clonagem, contudo, a questão do parentesco do clone não está bem definida ainda, bem como o grau de habilidade para a vida (seja o envelhecimento, sejam características psico-biológicas). Não há, pelo judaísmo, qualquer forma de diminuição da fé que depositamos em Deus com a clonagem. Se houver qualquer chance de avanço no tratamento de doenças consideradas fatais, há uma admoestação para que as pesquisas continuem sendo feitas, ainda que in vitro. Pesquisas médicas com seres humanos devem ser cercadas de todas as precauções possíveis para que não sejam transformadas em mera manipulação de cobaias.
    
Conclusões
            Mais do que um trabalho técnico, pretendemos indicar que a ética judaica permeia as decisões rabínicas em todas as questões apresentadas. Além disso, onde foi possível fomos buscar as fontes exatas das citações apresentadas na bibliografia. Pedimos desculpas nos trechos que, eviden-temente, isto não foi possível.
Gostaríamos de notar que, apesar da ética, a vontade do paciente não tem um grande peso quando se trata de casos de salvar a vida e sua autonomia nas decisões é bastante pequena. O suicídio assistido é, como todo suicídio, visto como até pior que o homicídio dado que não há qualquer possibilidade de arrependimento por parte do falecido. O ponto de partida do judaísmo é a santificação da vida enquanto feita à imagem de Deus e o conseqüente dever de preservar a vida. O limite desse dever é dado quando o paciente está próximo do fim e seus últimos momentos são de dor e sofrimento - eles não devem ser agravados.
Esperamos e pedimos que não seja remoto o momento no qual todos os seres humanos sejam agraciados com boa saúde e bom entendimento para que questões como essas não sejam mais relevantes.
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NOTAS
 (1) Rabino Eliezer Waldenberg, Tsus Eliezer vol. 9:45 (1967)
(2) Como o R. Moshe Feinstein.
(3) Como o R. Eliezer Waldenberg.
(4) Lit. em processo de morte. Há uma discussão entre os rabinos sobre qual a condição mínima para que o paciente seja considerado neste estado - uma visão mais estrita é a do rabino Bleich, que afirma que isto apenas acontece quando o paciente tem, de acordo com a opinião médica, três dias de vida. Já o rabino Ovadia Hadava, que serviu na Corte Rabínica de Apelos em Israel, tem uma posição muito mais leniente: o processo começa quando o paciente foi diagnosticado como terminal e tem dor.
(5) O rabino-chefe da cidade de Tel Aviv, Haim David Halevi afirma que, inclusive, somos obrigados a fazê-lo. O mesmo afirma um famoso halachista, Rabino Waldenberg.
(6) Judaism and Gene Design, Tradition (NY) vol. 13, 1972, pp.71-80, in: Rosner, op.cit.
(7) Em fevereiro de 1997, a ovelha Dolly nasceu no laboratório do dr.
Ian Wilmut, no Roslin Institute of Scotland.
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BIBLIOGRAFIA
1)  EISENBERG, D. - Abortion and Halacha in: Maimonides: Health in the Jewish World, Vol. 2, No. 1 (Spring 1996).
2)  The Role of a Physician in Jewish Law in: Maimonides: Health in the Jewish World, Vol. 2, No. 2 (Summer 1996).
3) The Ethics of Cloning in: Maimonides: Health in the Jewish World, Vol. 3, No. 3 (Fall 1997).
4) Multifetal Pregnancy Reduction in Jewish Law in: Maimonides: Health in the Jewish World, Vol. 4, No. 1 (Winter 1998).
05) ------. The Sanctity of the Human Body in: Maimonides: Health in the Jewish World, Vol. 3, No. 3 (Spring 1998).
06) ------. Risky Medical Treatment In Jewish Law in: Maimonides: Health in the Jewish World, Vol. 4, No. 3 (Fall 1998).
07) ------. Artificial Insemination In Jewish Law in: Maimonides: Health in the Jewish World, Vol. 4, No. 3 (Fall 1998).
08) HENDIN, H. Seduced By Death: Doctors, Patients, and the Dutch Cure. Norton publishers, NY. 256 pp.
09) ISRAELI, S. Organ Transplantation: Halachic Questions and Responsa in: Assia - Jewish Medical Ethics - Vol. III, No. 1 - January 1997.
10) LIPNER, A. Of Life and Death: A Jewish Response to Doctor Assisted Suicide. Viewpoint: National Council of Young Israel, Winter 1996.
11) NEEMAN, Y. Be'tzelem Elohim - In God's Image: Euthanasia - the Approach of the Courts in Israel and the Application of Jewish Law Principles - palestra proferida no Institute for Jewish Medical Ethics e publi-cada no site: http://www.ijme.org/.
12) NEWFIELD, P. Euthanasia, Physician Assisted Suicide and the Dying Patient: Medical Status - palestra proferida no Institute for Jewish Medical Ethics e publicada no site: http://www.ijme.org/.
13) ROSNER, F. Judaism, Genetic Screening and Genetic Therapy - palestra proferida no Institute for Jewish Medical Ethics e publicada no site: http://www.ijme.org/.
14) STEINBERG, A. Human Cloning - Scientific, Moral and Jewish Perspectives - palestra proferida no Institute for Jewish Medical Ethics e publicada no site: http://www.ijme.org/.
15) STEINBERG, A. & LOIKE, J. Human Cloning: Scientific, Ethical and Jewish Perspectives in: Assia - Jewish Medical Ethics - Vol. III, No. 2 - January 1998.